Foi o tempo em que caíram as estátuas.
Uma a uma
caíram as estátuas dos próceres
no centro das vilas, impregnadas de uma substância preta que chovia dos céus. A figura do velho general apontando o horizonte descompôs-se por acção dessa chuva e ficou sem medalhas. O financeiro que sustinha um chapéu com miúdos cadáveres famintos descompôs-se por acção dessa chuva e ficou sem o ouro. Foram caindo no centro das praças as estátuas do medo, as que tantos anos semearam as consciências de corvos. Por acção dessa chuva preta como os anjos.
E do centro das vilas e dos coídos das ruas e das escuras cozinhas onde imperou o silêncio foram saindo almas em procissão de dor, em formações antigas dirigidas à beira dos mares a reclamar palavras.
Foi o tempo em que caíram, uma a uma, as efígies no profundo interior da razão que é água colectiva. Houvo dias de júbilo, longos dias de combate contra um monstro que era resíduo da história sequestrada. O ruído das estátuas contra o chão foi música no centro da côncava memória. Cresceram as olhadas entre gente que antes nem sequer se conhecia. Dava-se pão à noite a qualquer que o pedisse. Talvez se amasse de formas que hoje não entendemos. Durante longos dias, longo combate e júbilo em favor de algum vento que não fosse adversário.
E ganhámos, e perdemos. Pois, se cessou a chuva, sempre se ignora a semente que deixa a água preta nas ruelas menos vigiadas das vilas.A semente tem garras, e asas, como um monstro.
E pouco a pouco, como o crescer da erva, fomos esquecendo que do pó das estátuas sempre abrolha uma estátua na geometria urbana do centro da memória.
Pois não soubemos, chegado esse momento, não soubemos dar-lhes forma às ausências: O nosso foi o périplo circular e eterno dos desamparados que percorrem sem luz a borda de um abismo situado exactamente onde começa o mar, onde um faro decrépito já não anuncia as barcas desfundadas contra as rochas. Foram longos dias de combate por dentro e por fora da História, e de júbilo por dentro e por fora dos corpos, e chegámos a estar nalgum lugar donde se avistava um terreno distinto, sem cruzes invertidas chantadas contra a erva, mas estar órfão é a mais poderosa matéria dos humanos. Sentir-se órfão e ter essa urgência de resgatar das alamedas e detritos os antigos fotogramas das estátuas, sempre a pedirmos perdão polo passado.
Assim mudam os tempos mas não mudam. Muda a cor da superfície das construções quotidianas, volta a porto uma velha embarcação com decorados de familiares que não reconhecemos.E no centro das vilas penduradas sobre um abismo preto nota-se tão grande ausênciaque às vezes nos perguntamos em segredo porquê deixámos tantas semanas abandonado o cuidado da casa e para quê foi o esforço de ir contemplando a acção azeda da chuva nas estátuas atravé s da janelaenquanto um novo exército de granito e metal se preparava extramuros da vila no calculado sigilo dos que sempre são vencedores.
E ganhámos. E perdemos. Eis o intenso relato.
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