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O Eu e o
Mundo de Rainer Maria Rilke
Carla M
milha@mail.telepac.pt
A
escolha de uma missiva como ponto de partida para uma reflexão sobre a literatura,
pareceu-me interessante sobretudo porque a relação pedagogo (Rilke) / discípulo
(Kappus), clara nas Cartas a um Jovem Poeta, reveste o discurso do emissor Rilke de
um carácter pedagógico que comporta uma aproximação do poeta Rilke à sua própria
poesia e, consequentemente, às fórmulas que a regem. Como tal, (e esta primeira carta
demonstra-o) confrontamo-nos com ideias (que ás vezes assumem contornos de ideais) que o
autor imprime fiel e coerentemente na sua obra, tentando seduzir o seu jovem interlocutor
com a ideia de que a poesia e a vida se não podem distanciar.
Rainer Maria Rilke: O
"Eu" e o "Mundo"
(Carta de 17 de Fevereiro de 1903)
Meu caro senhor:
Acabo de receber a sua carta. Não quero deixar de
lhe agradecer a grande e preciosa confiança que esta representa, mas pouco mais posso
fazer. Não analisarei a maneira dos seus versos, porque sempre fui alheio a qualquer
preocupação crítica. Para penetrar uma obra de arte, nada, aliás, pior do que as
palavras da crítica, que apenas conduzem a mal entendidos mais ou menos felizes. Nem tudo
se pode apreender ou dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que acontece é
inexprimível e se passa numa região que a palavra jamais atingiu. E nada mais difícil
de exprimir do que as obras de arte - seres vivos e secretos cuja vida imortal acompanha a
nossa vida efémera.
Dito isto, apenas posso acrescentar que os seus
versos não revelam uma maneira sua. Contêm, é certo, gérmens de personalidade, mas
ainda tímidos e escondidos. Senti-o, sobretudo, no seu último poema: A Minha Alma.
Neste poema, qualquer coisa de pessoal procura encontrar solução e forma. E em toda a
bela poesia A Leopardi se sente uma espécie de parentesco com este príncipe, este
solitário. Contudo, os seus poemas não têm existência própria, independência, nem
mesmo o último, nem mesmo o que é dedicado a Leopardi. Na sua carta encontrei a
explicação de certas insuficiências que já notara ao lê-lo, mas a que não me fora
possível dar nome. Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-mo a mim - depois de
o ter perguntado a vários. Manda-os para as revistas. Compara-os a outros poemas e
alarma-se quando certas redacções afastam os seus ensaios poéticos. Doravante (visto
que me permite aconselhá-lo), peço-lhe que renuncie a tudo isso. O seu olhar está
voltado para fora: eis o que não deve tornar a acontecer. Ninguém pode aconselhá-lo nem
ajudá-lo - ninguém! Há só um caminho: entre em si próprio e procure a necessidade que
o faz escrever. Veja se esta necessidade tem raízes no mais profundo do seu coração.
Confesse-se a fundo: "Morreria se não me fosse permitido escrever?" Isto,
sobretudo: na hora mais silenciosa da noite, faça a si mesmo esta pergunta: - "Sou
realmente obrigado a escrever?" - examine-se a fundo até encontrar a mais profunda
resposta. Se esta resposta for afirmativa, se puder fazer face a uma tão grave
interrogação com um forte e simples "Devo", então construa a sua vida segundo
esta necessidade. A sua vida, mesmo na sua hora mais indiferente, mais vazia, deve
tornar-se sinal e testemunho de tal impulso. Então, aproxime-se da natureza. Experimente
dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê, o que vive, o que ama, o que perde. Não
escreva poemas de amor. Evite, de princípio, os temas demasiado correntes; são os mais
difíceis. Nos assuntos em que tradições seguras, por vezes brilhantes, se apresentam em
grande número, o poeta só pode fazer obra pessoal na plena maturação da sua força.
Fuja dos grandes assuntos e aproveite os que o dia-a-dia lhe oferece. Diga as suas
tristezas e os seus desejos, os pensamentos que o afloram, a sua fé na beleza. Diga tudo
isto com uma sinceridade íntima, calma e humilde. Utilize, para se exprimir, as coisas
que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, os objectos das suas recordações. Se o
quotidiano lhe parecer pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser bastante
poeta para conseguir apropriar-se das suas riquezas. Para o criador nada é pobre, não
há sítios pobres, indiferentes. Mesmo numa prisão cujas paredes abafassem todos os
ruídos do mundo, não lhe restaria sempre a sua infância, essa preciosa, essa magnífica
riqueza, esse tesouro de recordações? Oriente neste sentido o seu espírito. Tente fazer
voltar à superfície as impressões submersas desse vasto passado. A sua personalidade
fortificar-se-á, a sua solidão povoar-se-á, tornando-se, nas horas incertas do dia, uma
espécie de habitação fechada aos ruídos exteriores. E se lhe vierem versos deste
regresso a si próprio, deste mergulho no seu mundo, não pensará em perguntar se são
bons ou não, não procurará conseguir que revistas e jornais se interessem pelos seus
trabalhos, porque gozará deles como de uma posse natural, como de um dos seus modos de
vida e de expressão. Uma obra de arte é boa quando nasce de uma necessidade: é a
natureza da sua origem que a julga. Por isso, meu caro senhor, apenas me é possível
dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades onde a sua vida
brota. Só lá encontrará a resposta à pergunta: - "Devo criar?". Desta
resposta recolha o som sem forçar o sentido. Talvez chegue então à conclusão de que a
arte o chama. Nesse caso, aceite o seu destino e tome-o, com o seu peso e a sua grandeza,
sem jamais exigir uma recompensa que possa vir do exterior. O criador deve ser todo um
universo para si próprio, tudo encontrar em si próprio e nessa parcela da natureza com
que se identificou. Pode acontecer que, depois desta descida em si mesmo, ao
"solitário" de si mesmo, tenha de renunciar a ser poeta. (Basta, a meu ver,
sentir que se pode viver sem escrever para que não seja permitido escrever). Mas, mesmo
neste caso, a introspecção que lhe peço não terá sido vã. A sua vida dever-lhe-á
sempre, quanto mais não seja, caminhos próprios. Que esses caminhos sejam bons, felizes
e longos é o que lhe desejo como não sei dizer-lhe.
Que poderei acrescentar? Creio ter abordado o
essencial. No fundo, apenas fiz questão de aconselhá-lo a evoluir segundo a sua lei,
gravemente, seguramente. Não lhe seria possível perturbar mais violentamente a sua
evolução do que dirigindo o seu olhar para fora, do que esperando de fora
as respostas que só o seu sentimento mais íntimo, na hora mais silenciosa, poderá
talvez dar-lhe.
Gostei de encontrar na sua carta o nome do
professor Horacek. Dediquei a este sábio um grande respeito e um reconhecimento que já
duram há anos. Quer dizer-lhe isto da minha parte? É uma grande bondade dele, que muito
aprecio, lembrar-se ainda de mim.
Devolvo-lhe os versos que tão amavelmente me
confiou e mais uma vez lhe agradeço a cordialidade e a amplitude da sua confiança.
Nesta resposta sincera, escrita o melhor que
soube, procurei ser um pouco mais digno dessa confiança do que o é, na realidade, este
homem que não conhece. A minha dedicação e a minha simpatia.
Rainer Maria Rilke
Paris, 17 de Fevereiro de 1903
Rilke, Rainer Maria, Cartas a um Jovem Poeta,
trad. de Fernanda de Castro, contexto editora, Lisboa, 1994.
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Desde
logo ressalta uma dualidade significativa entre o Eu e o Mundo.
Rilke afirma que os poemas enviados por Kappus não têm existência própria,
independência,... e explica-o através do interesse desenfreado que o jovem parece
demonstrar em ser aceite e reconhecido com prontidão o seu talento. A renúncia ao
reconhecimento exterior, numa palavra, a solidão, é tida por Rilke como a única forma
do homem eventualmente encontrar ou não o poeta que habita dentro de si. A
auto-interpelação necessita do cenário ideal - a hora mais silenciosa da noite - ,
liberta de influências externas; o Eu encontra-se consigo mesmo, questiona-se
na busca da verdade que determinará o seu modo de vida doravante e, chegando à outra
margem desse imenso e agitado rio, a inadiável decisão terá de ser tomada. Acreditando
que a sua vida nada significaria sem a escrita, então, diz Rilke, o homem tem que
construir a vida segundo esse ímpeto, ela tem que se converter em testemunho dessa
necessidade e é pertinente aqui assinalar essa relação entre vida e poesia que perpassa
ao longo de toda a carta.
A
aproximação à natureza é tida como passo fundamental para esse percurso e é
aconselhada uma abordagem quase adâmica do que rodeia o homem na medida em que, a melhor
forma de apreender pelo menos parte do que nos rodeia (até porque nem tudo se pode
apreender ou dizer, como nos querem fazer acreditar.) É essa espécie de regresso a
um estado puro. A natureza, em permanente transformação, é o espaço de contemplação
privilegiado pois nela nada existe de banal e repetitivo. Na verdade, a escrita de poemas
de amor é condenada por ser um tema corrente, sujeito a uma vastíssima tradição que
ante a novidade aponta o defeito, simplesmente porque esse passado implica por parte do
poeta o seu domínio, caso contrário a dificuldade do tema é intransponível.
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A
exortação a uma escrita com base no quotidiano, transporta Rilke rumo à questão da
possível pobreza desse mesmo quotidiano. Se o quotidiano parece pobre então a culpa é
do poeta pois não possui talento suficiente para abarcar as suas riquezas. Para o
verdadeiro criador nada é pobre e a própria distância temporal ou espacial apenas
intensifica uma proximidade. Aliás, são esses ecos distantes da infância ou de tempos
idos que povoam a solidão do poeta, mas é sempre um mergulho no seu mundo, sendo que o
mundo exterior não deverá de forma alguma inundar o espírito do poeta (aí,
provavelmente, e segundo o ponto de vista de Rilke, deixaria de ser poeta porque o
abandono ao exterior faria com que uma possível maneira própria se diluísse
nas águas poluídas das ideias feitas ).
O
trabalho poético é visto como um modo de vida e a não divulgação desse mesmo trabalho
é encarada como uma posse natural, algo não partilhado com o mundo exterior
que permanece envolto num manto de pureza, a partilha da tinta com o papel, do
Eu com o seu mundo povoado de fantasmas, fortaleza inexpugnável que,
incólume, se ergue ante um tempo e um espaço não seus.
Apenas
a necessidade interior pode produzir uma boa obra de arte e o seu único crítico deverá
ser a natureza da sua origem.
A
vida brota do mais profundo de cada um de nós e essa incursão (que é quase um excurso)
pode, em minha opinião, ser comparável a um retorno ao momento primordial e primeiro da
nossa existência, quando submersos no líquido amniótico, distantes do mundo ao qual em
breve pertenceremos, apenas nos chegam os disformes fragmentos de algo que desconhecemos.
Ser
poeta é responder a um chamamento, aceitá-lo como um destino e nunca pretender uma
recompensa vinda do exterior. A visão do criador como um microcosmos (o criador
deve ser todo um universo para si próprio) que se basta a si próprio e nele tudo
encontra, bem como no pedaço da natureza com que se identificou, conduz ao internamento
do Eu em si mesmo (Rilke fala em descida ...), a uma solidão
estratégica que se reflectirá na sua poesia. A introspecção trilha os
caminhos próprios necessários à maturação do Eu e à inevitável
identificação da arte com a vida. As respostas do discípulo só poderão ser
encontradas em si, no espaço mais solitário e simultaneamente mais povoado
que existir possa, o espírito. |
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