Os
sinais de passagem
e outros poemas
Iza Quelhas
OS
SINAIS
Passam os barcos
e ontem foi jamais
termos visto esses precoces sinais:
deuses, em ferro
moldados,
pousados sobre águas,
com seu lixo, luzes que não apagam
(qualquer Césio brinca de fazer dormir
gente e animais).
matizes de
púrpura na tarde quente,
o cheiro, o gemido da garganta oca,
como quem não vê desígnios na fumaça
na usina, na
fábrica, no estaleiro,
amontoam-se detritos, falta ar
e a bolha
com sua palidez de morte
nos espreita
PATER
Viajarei, meu pai, até o pôr
do Sol,
quem sabe navegar pelo rio Solimões?
será outro país a visão da
nascente,
fim dos latifúndios e
aldeias arruinadas.
só água e terra se
contornam.
só o tempo funde todos os elementos.
só a humanidade consegue transtornar tudo:
basta um instante.
VESTÍGIOS
DE TUDO
Após noites de resacas
iluminou-se um litoral de restos.
um mar cinza trouxe os resíduos de tudo:
sandália, cordas, brinquedos
quebrados,
esqueleto de guarda-chuva.
da praia, mirámos os restos
que sempre nos são devolvidos,
nós, donos de resíduos,
com seus tesouros sem caixas,
e seus deuses desnudos,
olhámos desamparados
a vasta riqueza do mundo
OS
SINAIS DE PASSAGEM
Antes da era de granizo chegar
até nós,
as palavras serão ditas,
quem sabe possam
reter a vida em folhas de celulose.
Como decifrar os sinais do
labirinto?
Vamos falar do exato lugar
onde nossas
mãos se deram,
transformado em lago gélido,
indiferente à súplica de nossos olhos,
dispersos entre tantos sinais.
Vamos lembrar o verde das
folhas,
a terra úmida.
Éramos crianças e um inverno sem estação abrigava uma fera e nos rondava.
Entre rodas de cantiga,
traziam
os ventos uma morte antecipada,
oculta em sementes e suas cavidades.
Espalhávamos segredos,
alegria devagar, mansa, última
a lentidão de um dia.
Apagados as rotas dos
navegantes e sua cobiça, a calmaria dos barcos
e seus rastros de feridos.
O que restou do jardim é
cinza de todos os lugares,
praga de algum adivinho.
Ficou sobre os telhados essa cor escorrendo,
telhas incendiadas no ruir das torres.
Apagados os vestígios,
as bruscas tempestades.
Nada restou ou poderá restar
sob uma Lua recuada.
A raiz das águas, fontes,
peixes e pássaros congelados,
mortos como se fossem parte
dessa humanidade displicente.
Os seres de uma insuspeitável
ternura,
bois com seus olhos cerrados,
estarão como nossos sonhos:
para sempre dormindo.
A nuvem atômica ou rede sobre
nós foi
lançada:
depois do acontecido, nada mais vivo pulsava.
Sob um céu sem cores, uma luz
de fogo ilumina insetos e suas lendas.
Nunca mais os charcos e sua beleza,
acordamos para a morte
num mundo sem diferenças.
O fácil presságio
esparrama-se por toda a parte,
artefato por gentes elaborado,
indiferentes às crianças e suas mãos de gesso.
Hoje, somos lendas, eventos
fantásticos,
iluminuras:
foices, fogo, cabeças suspensas, corpos mutilados
ou fogueiras
sem sumários julgamentos.
Na desértica paisagem
já não mais se vêem
a influência dos astros e suas rotas:
só resta a miragem dessa
insensata experiência.
Do livro A passagem dos sinais (1996), Rio de
Janeiro/Niteroi: EDUFF. |