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Xoan Anleo: Aleg(o)rias duma crise
Alberto González-Alegre
Cada obra de Xoan Anleo é uma chamada de
atenção. Desde sempre há nele uma teima quase única, por cima das
interpretações imediatas e das variações técnicas:
mobilizar quantos mais olhos for possível num entendimento aberto e não
exclusivista da arte, desdramatizando a arte em tanto que mito maior dos
prejuízos, e propondo em hábito constante a compreensão por
parte do espectador de que as suas obras chamam à amizade,
chamam à participação cúmplice resolta num olho piscado.
Por isso a prova do nove da efectividade das suas peças sempre se verifica quando
o espectador chega a casa, desobstruído, e não é capaz de prender
mecanicamente a tele porque está a sorrir-lhe a memória: verde natural,
céspede artificial.
Talvez não saibades de tudo que essa capacidade sua
de reconsiderar os objectivos da arte, esse teimar num verdadeiro além, vem de mui
longe, quer dizer, vem de sempre. Quando fazia cerâmica interpretava-a da inusitada
perspectiva dum ceramista performer, fechando-se despido num quarto de serviço
e celebrando uma êxtase cerâmica a espargir louco polo espaço argila
branda e mais engobos. Toda a sua obra, cerâmica ou não, antes e agora, resiste
a quaisquer tentativas de classificação e vínculo. Muito antes de andar
Anleo por Nova Iorque já andava Nova Iorque por ele. E outra cousa, importante para
quem duvidar do seu ou o considerar um comportamento aggiornato: já
então a fotografia era considerada como um veículo fundamental ou como um
constituinte chave duma boa parte das cousas que fazia; na performance que foi referida,
sem dúvida, mas também noutros eventos efémeros daqueles tempos
do início, como a instalação a céu aberto, nas beiras duma estrada,
que fizera na Califórnia, grumos de adobe à antiga dispostos numa curva de asfalto.
Cabodevila-Nova Iorque-Cabodevila sem sair do sítio;
há constância documental de que neste mesmo instante um único Xoan
Anleo anda por Manhattan enquanto dá aulas em Ponte-Vedra. No domingo passado
foi visto quando entrava no portal dum edifício em Dean Street, mas juro que esse dia
eu jantei com ele em Vigo. Nova Iorque introspectado e Nova Iorque pão comido.
E toda esta ironia, ré-qualificação das ideias
em imagens surpreendentes, não só está presente na sua
produção dita em termos de obra rematada senão que transpassa,
ultrapassa o âmbito do atelier. Os projectos de Anleo discorrem por um tempo expandido
e, da mesma maneira que para os espectadores as suas obras geram uma insistente
duração no olhar e na memória, para os curadores das mostras nas
que intervém esse tempo de criação expande-se para trás
até o ponto de todos se converterem em Xoan Anleo desde os inícios.
É normal que aconteça, para uns e para todos.
Porque sobre a parede ou painel branco sempre perturbado por uma solenidade peganhenta,
Xoan instala, em brilhante cibachrome ou em luminoso duratrans, fotografias de
lençóis empilhados sem mais, dum tipo que fala polo telefone num quarto
de hotel hortera e tropical, duma cortina retórica de neo-conforto
mortuório. E com a mesma força das imagens fazem-se evidentes os
conceitos propostos como invés: esse hotel ridículo constitui uma nova
modalidade da fossa comum.
Uma agulha enfiada de precisão. Imagem e ideia
aglutinadas por um buraco negro que se interpõe. Tampouco isto, por muito que
tenham mudado as maneiras de formalizar, é cousa recém adquirida.
Cabe mesmo dizer que essa proposta reflexiva, a um tempo intensamente social e
estritamente artística, constitui uma clara marca da casa. A duplicidade
exposta em mil formas: Escuridade e Transparência, Um
quarto dentro de outro, Com a luz apagada, enquanto um
rótulo insiste: Uma forma pública de representar.
Às vezes não recorre à presença física das
palavras mas sempre as imagens albergam um texto breve, uma sentença
escrita polo invés. De novo num mesmo tempo um provérbio que
ele inventa e logo injecta no espectador junto a uma mensagem abstracta que
concerne à arte.
Por trás das imagens caminha mesto um
rio preto que vai arrastando detritos. Por fora um brilho de sedução.
Aleg(o)rias duma crise.
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Por
trás
das
imagens
caminha
mesto
um
rio
preto
que
vai
arrastando
detritos
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