Memória de
Abril
José
Paulo Serralheiro
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Na vida de um povo vinte e três
anos é pouco tempo. Na vida de cada um de nós é tempo
demais. Passaram-se vinte e três anos sobre aquele salto que demos
da cama sentindo no coração a paixão do novo, o medo
de sonhar, o peso do passado, tudo submerso em ondas imensas de esperança.
Por pouco tempo, foi ainda o medo que era preciso limpar dentro de nós.
Depois uma paixão e uma esperança tão fortes que foram
capazes de nos cegar. E acreditámos que a vida se podia viver num
longo abraço.
Vinte e três anos depois aqui estamos
obrigados a viver. Ninguém nos perdoa se não formos capazes
de escrever um simples texto sobre Abril. E no entanto é tão
funda a dor dos sonhos por viver que nos apetece pedir perdão e desistir.
A obrigação leva-nos a percorrer o tempo, a relembrar factos,
a confrontarmos sonhos com a realidade e tudo nos parece vazio. Por muitas
voltas que possamos dar, Abril leva-nos sempre ao mesmo sítio, ao
sonho e á memoria do que sabemos ser incapazes de contar. Mas que
seria belo se acaso os homens tivessem já chegado ao tempo de se
viver.
Resta-nos a aparência da realidade
e o fingimento. Vivemos na sociedade do espectáculo. Deixe-mo-nos
pois do essencial, do que só captamos através de todos os sentidos,
do que está para lá das palavras e vamos escrever apenas o
que é possível escrever. Vamos ao trabalho sem
emoção.
Uma nota de realismo sobre o tempo. Estamos
hoje convencidos que uma razão para a nossa amargura vem do facto
de o essencial da vida humana ser uma construção de
gerações. E a nossa vida é apenas um brevíssimo
momento da vida de um povo. Ambicionamos o impossível que é
ver o mundo transformar-se no decurso da nossa vida. A amargura vem desta
impaciência de não termos tempo para dar tempo ao tempo. Dos
vinte e três anos que decorreram após o 25 de Abril recusamos
uma visão a preto e branco. Se acentuamos os traços negros
é ainda o desejo de intervir e de transformar, de procurar para todos
e não apenas para alguns uma vida melhor.
Em que país vivemos vinte e três
anos depois de Abril? Vivemos num país em que o primeiro ministro
é o Senhor Guterres sucessor do Senhor Cavaco Silva. Governado por
outros senhores que só se diferenciam do Senhor Cavaco Silva porque
não nasceram em Boliqueime. Mas atenção, não
estamos a criticar. Vivemos em democracia. Os governantes foram escolhidos
pela maioria do povo. Uma maioria que curiosamente gosta do Marco Paulo,
do Clemente, do Quim Barreiros e por vezes do Hérman José.
Uma maioria que esqueceu, ou nunca conheceu, Adriano Correia de Oliveira
e Zeca Afonso. Uma maioria capaz de levar as televisões a rivalizar
nas telenovelas, nos concursos, nos apanhados, na porno-chachada e noutras
imbecilidades, tudo em nome da conquista das maiores audiências.
Mas não vivemos só numa
democracia governada pelo Senhor Guterres sucessor de Cavaco Silva e pelos
seus acólitos. Vivemos numa democracia que vinte e três anos
após o 25 de Abril continua a contar com mais de um milhão
e duzentos mil analfabetos. Uma democracia na qual a maioria esmagadora da
população é profissionalmente desqualificada. Uma democracia
em que os muitos milhões de contos que vieram para qualificar
profissionalmente os trabalhadores foram parar aos bolsos de meia dúzia
de "empresários de sucesso".
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Esta democracia em que vivemos fez acentuar
nos últimos anos o fosso que separa ricos e pobres. Portugal, país
da Europa, vizinho da Galiza, membro de pleno direito da Comunidade Europeia
e Internacional, possui hoje mais de dois milhões de cidadãos
vivendo na zona de pobreza e cerca de meio milhão de homens e mulheres
procuram trabalho sem o encontrar. Em vez de diminuir, o número dos
socialmente excluídos vai em crescendo. E tudo em nome do progresso,
do crescimento económico, da moeda única, da modernidade, da
pertença europeia.
A democracia em que vivemos caracteriza-se
também por adiar a justiça social e acentuar a insegurança
e a exclusão social. O sentimento de pertença a uma comunidade
e a corresponsabilização pelo que nela se passa não
são aprendizagens escolares. Ou a sociedade desenvolve as estruturas
que a favorecem ou esta deixa de existir. O trabalho e o sentimento de
pertença a um local de trabalhado e a um grupo de companheiros de
ofício são factores fundamentais à coesão social.
A política de precarização do emprego é um dos
traços mais negros da actual política do nosso governo. Não
só pelos prejuízos que acarreta para cada um dos cidadãos
vítimas de tal política, mas pela exclusão social que
provoca.
Vinte e três anos após Abril
gostaríamos de ver uma sociedade mais solidária, mais coesa,
mais igual. Uma sociedade onde a dignidade de cada um fosse mais respeitada
e não adiada. Mais próximos daquela velha máxima de
cada um segundo as suas capacidades a cada um segundo as suas
necessidades. Vinte e três anos após Abril há uma
democracia por inventar. Vinte e três anos após Abril é
tanta a mágoa que temos medo de desesperar. Medo de perder a
esperança. Medo de já não saber combater. |