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Finis-aqua
Pedro Diniz de Sousa
Os carrascos e a vegetação rasteira imediatos à falésia que dá para o buraco
do mar ao pôr do sol têm os ramos alaranjados do ângulo oposto àquele donde
ele vê. O vento sopra e o frio que traz esconde os ruídos. É nas finisterras
do lado leste de Sesimbra, ou mais para Leste, na Arrábida, não excluíndo
lugares semelhantes que existem no mesmo dia; não faltam na Europa
precipícios costeiros recortados à espera de anoitecer.
Ele encontra-se para os lados da Aldeia do Meco, o mar é uma angústia azul e
distante lá em baixo. Não foi ali fazer uma coisa normal. Aliás, não podia
ser manhã, neblina reflectindo muita luz e isso. Era impossível. Encontra-se
sozinho com o carro, sujeito passivo duzentos metros atrás dele, e ao lado
esquerdo a cem metros está um restaurante que parece um hangar e uns carros
à porta imóveis ao vento e umas pessoas, nem meia dúzia, em trânsito entre
os seus carros e o restaurante. Este conjunto do lado esquerdo é tão
estranho como uma orientação que a vida podia ter tomado aos nove anos de
idade a partir duma situação impossível de lembrar ou tentar lembrar. Por
isso do lado esquerdo há vento e as pessoas abraçam os próprios pullovers
contra si e amam-se das posições relativas em que andam devagar porque são
familiares entre si e o que é melhor estimam-se sendo adultas.
Ele vai ficando a ver as ervas, os carrascos, um ou outro saco de plástico a
esvoaçar no isolamento da morte e à distância a argamassa do mar compactada
pela perspectiva e gelada, e profunda como quem tem sono. Ele parado,
existindo por sobre a paisagem e só isso. Pensa? Pensamento insondável no
desvario em que anda, um remoínho. Não foi ali fazer nada a não ser andar de
carro, perseguir as estradas, as curvas, dominar, dominar o que nunca foi
dominado e que é a vida.
Mas isso do carro é antes, e depois, porque ali propriamente ele não foi
fazer nada. Mas lá que o vento frio e a paisagem são um estranho remoínho...
Talvez o que o detenha ali seja que a paisagem toda e cada parte contêm a
sua infância, essa claridade afogada no esquecimento; e o esquecimento não é
mais do que a pressa para cumprir a morte; talvez daí a inquietação.
A bola de soprar, às cores, saltando na praia, na década de 60 e no
respectivo imaginário moribundo para ele. Pois o Estoril. Pois a empanagem
do carro num pinhal qualquer e os tios e aqueles sons da 40ª do Mozart, o
combóio da Parede, azulejos do chão do quintal pelo verão, e décadas depois
Setúbal, a Martine, o desespero tá tá tá, os primeiros medos do mar, e tanta
tanta tanta coisa e e e e e e e e e...
Um desvario. Uma excitação de morder o não ter havido aquilo, tá tá tá,
morder o que houve e não sabe. Hoje já nada sabe a nada ali ao vento, o
calor laranja nu do sol diz que sim, concerteza, nada sabe a nada. Nem os
sacos de plástico brancos e o acolá azul-claro passam do que são. Nada passa
do que é. O écran da matiné ali mesmo, o Peter Pan projectado no écran do
céu do cabo, não. Pelos rochedos que dali não se vêem entra-se no mar.
Entra-se mesmo. As ondas grandes, a espuma, tudo: entra-se. Depois as
pulsações aceleradas com o alto do precipício lá em cima no começo do céu, e
o envolvimento na água propriamente dito. A seguir o escuro, o engolir a
água salgada, e o morrer afogado de solidão, os rochedos mortíferos dos
lados e atrás a praia escassa, a ravina impossível de subir. Mas tudo isto é
um delírio porque dali não se vêem sequer as rochas, a praia, as ondas,
embora se possa ouvir o murmúrio. E o que existe é o que se vê dali.
Há tanta coisa que passa fora da vida. O que não passa fora de certeza é as
ervas verdes esvoaçando alaranjadas pelo sol poente e o perturbador vácuo do
precipício logo a uns metros, e o horizonte de mar; numa palavra, a
infância. Ela não passa fora. Ele é uma criança. Terá deixado de o ser em
certas alturas, terá até dobrado para outro oceano, mas regressou ao
primordial, ao oceano de água doce da infância. Condição de criança como
preço a pagar pela possibilidade que há de viver.
Dentro do carro semi-adormece ao som da rádio. Roda a chave, desliza
suavemente sobre a terra batida, eras de experiência. Vai-se daquele lugar
penetrando a estrada com satisfação selvagem.
Impossível ali de manhã com uma coca-cola na mão e olhar incendiário.
Impossível o avesso da vida. Vida uma submissão miserável. Ser incendiado
ele pela paisagem, mãos nos bolsos, alma querendo engolir a cidade longínqua
onde mora aquela pessoa. Alma louca de alegria por poder estar no impossível
através da vegetação rasteira e do mar. Mas sabendo, submissa, ser
impossível ali de manhã. PORQUE NÃO FOI.
9.outubro.1990
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