 |
Este texto tem uma história estranha. Foi
escrito em 1995 e enviado à revista A Nosa Terra, onde nunca
foi publicado, ao parecer por razões de tempo. No ano seguinte, foi
lido entre poemas de outros perante uma dúcia de pessoas que comemoravam,
no local da Agrupação Cultural O Facho da Corunha, os
velhos signos da revolta. Agora sai em Çopyright e,
como texto, acaba o seu ciclo.
Eu tinha quinze anos quando, numa
manhã assoalhada, entre os corredores dos edifícios escolares,
cresceu a voz jubilosa de que no Sul acontecera a revolução
que outros jamais pudemos ter. Lembro-o agora, e lembro-o sempre que atravesso
a ponte falaz do rio que nos divide, custodiada por sentinelas de doze estrelas
amarelas circulares, um símbolo fechado como as fronteiras exteriores
desta cruel Europa, um desenho que perverte a eterna geometria de Stonehenge,
um frio emblema que emula a circularidade do Discurso donde emerge.
Na verdade, nunca poderei conciliar
de tudo a minha admiração por aquela revolta de flores e
canções com a imagem dos tanques e fuzis, que sempre matam.
Mas muito me temo que me respeito e respeito as minhas próprias
contradições, e hoje, como então, percebo aquela manhã
assoalhada talvez como o maior símbolo da nossa cultura política
actual, porque a revolta dos cravos aconteceu aqui, na casa nossa, no nosso
único território segmentado por dous exércitos rivais,
simplesmente ao Sul dum rio imposto por outros para nos roubarem a História
e a palavra.
Tantos anos mais tarde, ainda há
uma revolta pendente ao Norte e Sul do rio falso. É a revolta da fala,
o balbordo das ideias e dos feitos, o reunirmo-nos sem causa nem escusa nas
noites cidadãs para trocarmos textos, voltarmos a constatar o mútuo
persistir, elaborarmos obsessos projectos de papel e resistência, cedermos
finalmente perante a premura do alvor que já golpeia como uma maré
de minutos implacáveis contra ruas e alcovas desoladas. Essa revolta
de palavras inaugura-se cada dia nos actos mais miúdos. As mais das
vezes não somos conscientes, mas estivéramos todo o dia a
colocarmos pedras para acrescentar uma torre de palavras. Ao cair a noite
vêm o vento e um deus cruel, e no-la esmagam. Espertamos com a língua
resseca de falarmos. Mas, se cumprirmos de novo o esforço de procurar-nos
mutuamente pelas ruelas em que ainda podemos habitar, se é assim,
logo, a nossa derrota clandestina vale a pena.
Somos poucos. Talvez eu nem sequer
seja um de nós mesmos. Só sei que existe alguma gente com nome
verdadeiro que não esquece aquela revolução de cravos,
nem o poder da conversa, nem o ingrato trâmite de todos os dias alumiarem
um sonho muito antigo à margem e por baixo dos formidáveis
edifícios oficiais, onde se estende um ar podre de favores que espero
que nunca alcance aos proscritos. Essa pouca gente reune-se sem grandes algaradas
para lembrarem um povo e uma data nas ilhas anónimas das cidades:
não debaixo do foco dos objectivos alerta, não diante dos
microfones luxuriosos, não debaixo das alvas asas das editoras nacionais,
não sob o pálio branco-azul que acolhe os heterodoxos consentidos,
não nas revistas que reproduzem as minúcias fac-similares de
autores da pré-guerra, não nos eléctricos escritórios
onde subalternos mal pagados amartelam os projectos intelectuais do governo,
não na voz ubíqua da rádio que em cada entardecer nos
repete as mesmas convocatórias insípidas, as mesmas mediocridades,
os nomes próprios de sempre. Não: essa escassa gente reune-se
de dous em dous, de três a três, às vezes a sós,
em torno dum longo café de sobremesa, com um caderno de manchadas
notas apertadas, com uma brétema de cravos vermelhos imorrentes nas
olhadas, sempre na formosa impossibilidade de serem multidão.
Venim d'un silenci antic i molt
llarg: vínhamos de um silêncio antigo, longínquo.
Alguns de nós, ou deles, ou de vós, ainda o levamos acima,
e o nosso sonho consiste em resgatarmos desse tempo antigo as poucas palavras
certas que nos constituem, e em dizermo-las no papel como são,
comuns e solidárias a Norte e Sul do nosso rio. E fazendo isso alguns
de nós, ou de vós, arriscamo-nos ao escárnio e à
mentira.
É perigoso, não se
engane ninguém: é perigoso. Mas somos assim, ou são
assim, os que ainda lembram. |
|