Pensamento, crítica e criação em galego-português
Çopyright começa
hoje uma colaboração tão esporádica como o determine
o rumo das cousas com o sítio
Non! crítica &
intervenção, aparentemente da cidade virtual de
Coimbra. Reconforta encontrar outros a quem também engana o difícil
projecto de pensar. Tal vez por isso este texto se chame Navegações ou miragem. O texto sai clonado simultaneamente aqui e em Non!
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Numa noite qualquer,
na segurança da minha casa, aonde não sobe tanta tristeza dos
locais de bêbados precários ou o frio combatido dos inocentes,
chego nas minhas navegações até ao sítio de
Non!, nome enfático que invoca uma das poucas respostas que
nos restam. Fascina-me logo a possibilidade de encontrar em Non! um
lugar amplo e paralelo, complementar de Çopyright, este projecto
astuto que me desvela e me introduz, também contra a minha vontade,
na dimensão onde já não somos quem deveríamos
ser. Fico primeiro cativo da contradição e revolta que esse
Non! significa. A velhice do Non contrasta com as formas
e discursos activos: crítica e intervenção.
Porém, no meu país, a que chamam a Galiza e a que nós
sobrevivemos, non é a forma escrita mais comum da negativa
não, num idioma sempre inventado polos poderosos. No meu
país, numa sorte de espelho de palavras, a revolta simbólica
talvez consistiria em nomear uma mostra equivalente de leve resistência
Não!. Eis a minha admiração polo jogo das palavras,
que emula a multiplicidade de tentarmos ser e de tentarmos, sempre, conservar
a memória das infâmias humanas para não repeti-las.
Enquanto cai a noite a prumo sobre o meu cansaço privilegiado, sobre o meu cansaço escassamente produtivo (sou professor, o que é quase como dizer que nunca habito realmente no lugar físico onde pervagam molhadas as crianças, as mães de pobreza abandonada), enquanto anoiteço e amanheço enfim, navego por Non! e por outros espaços aparentemente vizinhos só na nossa representação das cousas. E acho lugares avondosos de vozes de resistência, de convocatórias a seguirmos pensando de jeito diferente. São lugares ainda abertos, como feridas que devem seguir vivas, textos imateriais, de pura electricidade persistente, que não podem ser queimados nas fogueiras absolutas de todos os estados. São lugares possíveis, e por isso impõem a esperança. Mas são também lugares fictícios, decepcionantes na sua imaterialidade, como resíduos consentidos de um esforço humano muito antigo por emancipar-nos a nós próprios e, portanto, por emanciparmos a História, para a História deixar de ser esta sucessão de dor e escuros fotogramas lacerantes. Depois, algo mais tarde ou noutra noite insone, navego pola rede com uma amiga que deve fazer uma longa viagem ao Brasil proximamente. Em instantes, visitamos as universidades e o Rio, aprendemos a história oficial dos prédios coloniais, e não minto se constato o fascínio que ambos sentimos ao contemplarmos as fabulosas possibilidades de viajarmos sem distância, de novo ao longo dos fios telefónicos, desde o alvor urbano da Galiza até ao sol-pôr açucarado das praias estendidas. Como se estivéssemos ali, intuo que pensamos. Como se na realidade estivéssemos ali. Mas, por que não estamos? E aí descubro por que não estamos ali, nem podemos estar. O caos ou azar fez de cada um de nós uma disposição distinta da matéria. Jamais poderemos ser aquele que não somos. A unidade da espécie descompõe-se perante a evidência do azar e da História. Diante dos olhos de qualquer de nós, diante dos olhos meus ou de quem me lê, uma só e impiedosa imagem das terríveis favelas, estendidas como excrescências orgânicas polas abas das montanhas, situa-nos onde realmente estamos, lembra-nos quem somos realmente, e lembra-nos a miragem de imaginarmos uma nova História possível. Porque no mundo da Rede ou da palavra escrita as favelas não existem, não podem existir. Podemos dizer Non!, podemos expulsar em alto esta ânsia antiga, humana, legítima, mas o nosso enunciado primordial e por isso profundamente libertário não poderá evitar a persistência desta epopéia de miséria. E é que as favelas não precisam explicação nem admitem combate. As favelas são a sua própria evidência, emergem como um malefício insofrível, delatam-se como um duríssimo fracasso. As favelas são uma metáfora da mente. Não sei se estou vencido, mas Non!, Non nos enganemos. Entre o desejo e a libertação estão os nossos actos. Se eu nunca poderei ser aquele rapaz esfarrapado da favela ou aquela apartada adolescente, nenhuma justificação vale e só me resta a culpa. E se eu for aquele rapaz ou aquela adolescente, então não compreenderia o quê escreves, porquê escreves. |
Çopyright 32:
destinos
periféricos, Rui Bebiano