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A primeira
vez que deixei o meu país, que nesse tempo falava em voz baixa
e vivia a preto e branco, foi em viagem, no banco de trás de um daqueles
Volkswagen carocha feios mas resistentes. Íamos tinham decidido
os adultos dar um passeio a Espanha. E, conhecido
o destino, logo imaginei medonhos touros Mistral, com a sua baba quente e
fumarenta, dançarinas de flamengo com grandes brincos dourados e de
lábios muito vermelhos, moinhos de vento no topo das colinas, e
açúcar em cubos. Aspecto importante este, aliás, porque
de onde eu vinha servia-se ainda o açúcar em pequenas taças,
nas quais toda a gente mergulhava uma única colher, pequenina e
persistentemente pegajosa. Era, pois, dessa Espanha de papel
de cenário que eu estava à espera.
Saímos por uma qualquer
fronteira do norte (nessa época existiam as fronteiras, vocês
lembram-se?), rumo a um destino que afinal era um equívoco. Fazia
sol e muito calor nesse Agosto, e, se parássemos o ruidoso motor
alemão, capaz de beber quase trinta litros de gasolina em cada vinte
léguas, poder-se-iam talvez ouvir os pássaros. Do lado de lá
da janela envidraçada, passava agora a sonolenta Guarda Fiscal, depois
um pequeno intervalo desolado, e, em seguida, os inconfundíveis
tricórnios da Guarda Civil. Um pouco adiante um bienvenidos,
traçado assim mesmo, em sonoro e claro castelhano. E foi desta maneira,
sem história nem originalidade, que entrámos na Galiza.
O automóvel seguia um percurso
que já não recordo, cruzando uma paisagem que, essa sim, guardo
na memória. Era um universo estranho, porque, ao contrário
das expectativas do grupo, nada era substancialmente diferente daquele mundo
de onde vínhamos. Lembro a estrada muito estreita, em serpentina,
cortando por entre povoados de granito e casas de dois pisos, metendo-se
através de florestas e de hortas de um verde reconfortante, passando
ao lado de igrejas românicas velhinhas, aproximando-se de um mar tão
azul quanto o meu, e tornando depois para o interior, escalando montes suaves
e amigáveis até cidades que não sei agora identificar.
Ainda posso ouvir a troca de palavras do condutor com um cavalheiro de aspecto
austero, de bigode latino e relógio de bolso, que respondeu às
dúvidas a respeito do percurso que lhe colocáramos, de uma
forma que me pareceu afável, pausada, num linguajar que se
assemelhava bastante aquele que ainda hoje uso.
Depois não ficou muito mais na
memória. Se não talvez uma paragem junto a uma fonte, para
comer os restos de um farnel levado de casa. O lugar onde se chegou a nós
um grupo de mendigos, quase só mulheres e crianças,
pedindo comida e algum dinheiro a estrangeiros que eles pareciam
julgar ricos e generosos. Facto incompreensível para mim, que vinha
de um país de pobreza, habituado a gente de pedir, e que julgava
sinceramente estar num mundo mais feliz. Ou, vá lá, um pouco
menos injusto.
Voltei mais vezes à Galiza. Mais
algumas vezes. Em viagens imaginadas, em poemas lidos à pressa,
nas imagens estilizadas de postais ilustrados antigos, no perfume dos vinhos
que confinam com os meus, nas vitórias de uma equipa de futebolistas
estrangeirados. Em trânsitos reais também, viagens quase
sempre breves, estadias precárias que não deixaram muitas
recordações nem grandes amizades. Embora lembre uma esplanada
de A Corunha, tomando um refresco de capilé e ouvindo velhas senhoras,
de porte frágil e conversa desembaraçada, que lembravam na
sua língua quase a minha, ou a minha, juventudes idas, alegrias perdidas
e tristezas de outros tempos. Numa espécie de nostalgia sem nome,
mas selectiva, que relembra as gargalhadas passageiras e passa, quase se
lhes tocar, por cima de sofrimentos incontáveis e persistentes.
Lembrei a minha viagem de infância
e esse grupo de velhinhas bem-dispostas há dias, quando, pelas rotas
nocturnas deste universo virtual mas tão presente, cheguei a
Çopyright. Afinal a Galiza era mesmo ali, no monitor a três
palmos dos meus olhos. Do outro lado, quem se mostrou capaz de, tal como
o homem do relógio, indicar um caminho a tomar. Se calhar, a escrever
na mesma língua, até poderá nem ser difícil.
E assim partímos juntos, ao encontro dos mendigos e das velhas senhoras
deste mundo. |
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