O continuum das normas escritas
na Galiza:
Do espanhol ao português
Celso Alvarez
Cáccamo - lxalvarz@udc.es
Mário J. Herrero Valeiro - marioh@udc.es
Área de Linguística Geral, Faculdade de Filologia
Universidade da Corunha
Publicado em Agália. Revista da Associaçom
Galega da Língua 46, 1996, pp. 143-156. (*)
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publicado, incluindo ligações de hipertexto cruzadas entre o texto principal, as notas a
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O continuum das normas
escritas na Galiza:
Do espanhol ao português
Celso Alvarez
Cáccamo - lxalvarz@udc.es
Mário J. Herrero Valeiro - marioh@udc.es
Área de Linguística Geral
Faculdade de Filologia
Universidade da Corunha
Publicado em Agália. Revista da Associaçom
Galega da Língua 46, 1996, pp. 143-156. (*)
Nas soluções técnicas oferecidas para resolver os
problemas de representação gráfica dos idiomas subjazem induvitavelmente várias
questões: (1) a relação entre a forma do veículo sígnico e o referente designado; (2)
a relação entre a forma gráfica da palavra e a sua imagem acústica; e (3) as maneiras
de as gentes conceberem estas próprias relações e de conceberem o próprio idioma a
respeito de outros e a respeito das suas normas escritas, segundo ideologias
linguísticas específicas, isto é, em termos gerais, segundo sistemas de crenças,
valores e noções de senso comum sobre a linguagem.
Quanto ao primeiro e segundo pontos anteriores, é sabido
que na evolução da escrita, a relação icónica entre forma gráfica e referente
(fundamentalmente objectos materiais) deu lugar aos sistemas pictográficos e,
posteriormente, ideográficos (o chinês na sua origem, as tabuinhas e bullae
sumérias antigas). [1] Num passo seguinte, a
forma escrita representa, já simbolicamente, palavras da língua, quer na sua forma
logográfica (os jeroglíficos egípcios ou muitas formas do chinês actual), [2] quer em diversas formas ortográ-
Notas
(*) Pequenas variações posteriores à versão publicada são indicadas em
parênteses quadrados [ ]. Há também variações mínimas de pontuação. Agradecemos a
José Paz, da Associação Sócio-Pedagógica Galego-Portuguesa, a sua correcção de um
erro bibliográfico.
[1] A percepção do grau de iconismo
ou abstracção de um signo apresenta sem dúvida especificidade cultural. Confúcio,
diz-nos Kristeva (1988:88), considerava
que os ideogramas simbólicos (concretamente o ideograma de cão), onde nós
veríamos provavelmente um desenho altamente abstracto, representavam o objecto como
perfeitos debuxos, ou seja, iconicamente.
[2] Os chamados
ideogramas do chinês são na realidade logogramas, isto é, não já
representações de conceitos abstractos, mas unidades léxicas, mesmo com indicação
(também simbólica) da pronúncia correspondente. Este procedimento é tambem denominado taxograma
(p. ex. Pottier 1992:64), pela sua
função classificatória das palavras. Taxogramas seriam, também, as formas escritas
onde os maiúsculos distinguem nomes próprios de comuns nalguns idiomas: Coral / coral
em português, Heather / heather urze em inglês, etc.
p. 143 |
ficas (silábicas, como os kana japoneses; ou alfabéticas, como os sistemas
grego e latim antigos e os derivados actuais, ou como o hebréu e árabe, com
representação opcional das vogais). Dentro dos sistemas alfabéticos, é também sabido
que alguns, como o espanhol ou o grego, se aproximam de uma representação fonémica da
língua, com correspondências relativamente estáveis entre grafemas e fonemas. Porém,
nem a evolução dos sistemas de escrita é sempre linear, nem os sistemas se encontram em
estado puro. Joseph (1987:66), por
exemplo, argumenta que o inglês escrito actual tem revertido de alguma maneira a um
sistema logográfico. Isto é, dada a impredictibilidade da pronúncia das
combinações de grafemas em inglês e dada a grande variabilidade de pronúncias, em
grande medida as palavras tendem a ser aprendidas e lidas como unidades globais,
comparáveis assim a caracteres logográficos. Isto não obsta, porém, para o aprendizado
do inglês e da sua pronúncia por grupos crescentes de pessoas.
De uma maneira semelhante, em espanhol a existência de
grafias distintas para homófonos da fala comum (hecho / echo) ou dialectal (haya
/ halla) e os acentos diacríticos (éste / este, aún / aun, etc.)
podem considerar-se recursos logográficos --não verdadeiramente alfabéticos nem
fonémicos-- para os utentes identificarem palavras da língua com as suas funções
correspondentes. [3] No sentido contrário, a
suposta foneticidade do espanhol também çoçobra perante as pronúncias dialectais: los
muchachos pode ser a representação de múltiplas formas, tais como [loz mu' a os], [loh mu' a oh],
[l mu' a' ], etc. Porém, não parece
haver obstáculos insalváveis para o reconhecimento destas formas escritas como palavras
do dialecto próprio, uma vez aprendidas as regras de correspondência biunívoca
entre forma gráfica e imagem acústica. O fenómeno é tão comum nas línguas
estandardizadas modernas que nesta altura mais exemplos sobram. [4]
De facto, grande parte do material da linguagem escrita
é redundante para o seu reconhecimento na leitura. É argumento conhecido que se, por
exemplo, eliminarmos as vogais de um texto, ainda PDMS RCNHCR, CM CRT SFRÇ, MTS PLVRS.
Em certo sentido, as sequências gráficas resultantes podem se entender como logogramas
das palavras da língua.
A expansão da comunicação informática está também a
contribuir para relativizarmos a suposta primacia da ortografia fonémica, sobretudo em
certos tipos de mensagens pontuais e não técnicas, como a correspondência rápida. O
problema inicial de representação dos diacríticos, vogais nasais, çês, ou eñes
no restringido código ASCII (ainda dominante na comunicação informática), que carece
destes símbolos, cede perante a eficácia final de uma
[3] O mesmo acontece, sem dúvida,
para aqueles falantes de variedades galego-portuguesas onde pares como vou / bou, são
/ som, passo / paço, etc. são homófonos.
[4] A evolução fonética do
espanhol, inclusive, questiona cada vez mais o princípio fonémico de correspondência
fonema-grafema. Um poderia perguntar-se sobre o futuro da relação escrita-fala no
âmbito do espanhol, dada a crescente eliminação dos grupos cultos, a expansão do yeísmo,
a aspiração e ulterior queda do /s/ final nos plurais, etc.
p. 144 |
simplificação gráfica que já não respeita o princípio fonémico.
Os acentos são sistematicamente eliminados, assim como o ç, enquanto o ñ
costuma representar-se (dependendo da tradição e lealdade linguística do usuário) como
n, nn, nh, ny ou n~:
Asi se escribiria esta oracion en espanol (ou espannol) en codigo ASCII
Em portugues a solucao (ou soluc,ao) nao e (ou e') muito distinta.
Só um teimoso débito com o purismo ortológico
(isto é, com o suposto bom ler) nos levaria a ler espanol como
[espa'nol] (e não [espa' ol],
[ehpa' ol] ou mesmo [ ppa' l]),
ou solucao como [solu'kao] (e não [sulu'sã ] ou mesmo [solu jõ ). Nesta segunda leitura, é relativamente irrelevante de onde
provém o [j] da terminação -ão: donde provêm, por exemplo, o mesmo
[j] sistemático da pronúncia inglesa da Grã Bretanha ['stjudn t] student estudante, o [ ] final de pronúncias como [a 'di ] idea
ideia também em inglês británico, os ditongos do inglês do Sul dos E.U.A.
['s  nts] cents
cêntimos ou ['i z]
(padrão [' z]) is
é, o próprio [f] do estândar tough ['t f], etc.?
Se somos capazes de abstraer desta maneira a informação
do signo linguístico (embora nos levar mais ou menos prática) para associarmos as
palavras adequadas às formas gráficas inusuais (solucao), com muita mais razão
seremos capazes de reconhecermos essas mesmas palavras da nossa língua quando
representadas de maneiras sistemáticas numa ortografia regular (solução).
Por exemplo, dado que em muitos dialectos
galego-portugueses a palavra uma não se pronuncia com [m] intervocálico, perante
a forma gráfica uma, reconhecida como palavra da língua, os falantes
dialectais não têm outra opção que fazerem corresponder a sequência escrita com a
imagem acústica própria ['u a], [' a] ou [' a]. De igual jeito, a sequência -ão pode ser
interpretada logograficamente e sistematicamente como as pronúncias coloquiais ['jõ ] (naquelas falas historicamente
interferidas pelo espanhol), ['õ ] ou ['jã ]
segundo os casos, se na mesma gramática interna dos falantes não existir a pronúncia
ditongada [ã ]. [5] A tendência de alguns leitores a lhe atribuírem à
sequência de símbolos -ão a leitura [ao], incorrecta na maior parte dos casos, [6] só pode vir do hábito de leitura noutra
língua: o espanhol. Também a tendência inicial a articular (erradamente) o g
do inglês song canção ou do seu derivado singer
cantante (de facto ['s   ]),
procede amiúde do hábito de leitura noutra língua, mas este erro é superado quando se
aprende a correspondência relativamente arbitrária ng = nasal velar [ ].
Em resumo: em princípio, não existe qualquer obstáculo
cognitivo (ou social) para uma pessoa (ou uma sociedade) manejar com propriedade dois
[5] O mesmo acontece, também
sistematicamente, com outros conjuntos de grafemas como ch [ ], qui [ki], etc.
[6] A correspondência ão =
[ao], claro está, é correcta para pronúncias dialectais de formas como mão ou irmão.
p. 145 |
ou mais sistemas distintos de escrita. Para voltarmos ao exemplo
anterior, imagino que nenhum leitor habitual de castelhano interpretará erradamente a
forma espanhol como [espa'nol] (embora o h seja mudo em palavras castelhanas
como inhibir), e que nenhum leitor galego a interpretará como [espa' ol] (embora nh se utilize nos
sistemas gráficos dominantes para representar a nasal velar). De facto, na comunicação
entre galegos na rede informática Internet é cada vez mais frequente o uso do dígrafo nh
com o valor da nasal palatal [ ], mesmo nas mensagens em espanhol, e mesmo por aqueles que também
utilizam nh com o valor da velar [ ]. Uma grafia, dois sons?: nada novo para as línguas
naturais. Isto, simplesmente, confirma o carácter híbrido alfabético-logográfico da
nossa escrita habitual.
Existe um exemplo muito mais evidente da capacidade de
abstracção e reconhecimento das palavras da língua na leitura: os japoneses empregam
habitualmente quatro sistemas de escrita, inclusive dentro da mesma oração: 1) os kanji
de origem chinesa, símbolos logográficos que podem representar palavras polissilábicas;
2) e 3) os dois sistemas paralelos de silabários chamados kana (katakana e hiragana),
símbolos que correspondem comumente a uma combinação consoante-vogal do tipo [mi],
[so], etc., e 4) o alfabeto latino (romaji) para nomes comerciais estrangeiros e
outros usos. O índice de alfabetização do Japão está entre os mais altos do planeta.
Devemos confiar nesta capacidade humana de abstracção
da comunidade falante à hora de tratarmos o problema da escrita. A aprendizagem radica em
deslindarmos as dimensões alfabética e logográfica dos sistemas
gráficos. Sem dúvida, os métodos pedagógicos adequados podem levar adiante, sem
problemas adicionais aos de qualquer sociedade alfabetizada e comprometida com a
necessidade da alfabetização, o ensino de duas grafias distintas, como acontece no
Japão, no Quebeque, ou na Catalunha.
O terceiro aspecto fundamental citado (o das ideologias
linguísticas que subjazem às soluções técnicas para os problemas ortográficos) está
directamente conectado com a maneira de concebermos e sinalarmos a identidade (e não
apenas a linguística). Uma breve olhada à situação das línguas crioulas do Caribe, da
mão de Schieffelin e Doucet (1992), de
Sebba (1995) e de Tabouret-Keller e LePage
(1985), pode ajudar-nos a focar o
problema.
Numa afortunada exposição, Schieffelin e Doucet
salientam o que podemos chamar a indexicalidade ideológica da ortografia, isto é,
o seu significado além do referencial, que aponta, em todos os casos, para a identidade
grupal dos seus utentes. Comentam as autoras que no Haiti, dado o continuum de
variedades faladas do crioulo haitiano ou kreyòl, de base francesa (por exemplo, kreyòl
swa ou crioulo suave, kreyòl rèk ou crioulo forte, kreyòl
fransize ou crioulo afrancesado), as diversas opções ortográficas
cobram valores ora de mesmidade (o verdadeiro crioulo haitiano)
ora de
p. 146 |
outridade segundo se afastarem mais ou menos do modelo
colonial. [7] Por pôr um exemplo paralelo
familiar, em português as formas povo e pobo significam referencialmente o
mesmo, e pronunciam-se basicamente igual ao norte do Douro (isto é, são a mesma
palavra); porém, povo e pobo podem sinalar indexicamente distintas e
encontradas posições no campo do saber sobre a língua e no campo da própria prática
da língua (Álvarez Cáccamo 1993:
12-15).
No seu importante trabalho sobre o surgimento dos
padrões linguísticos relativo aos processos de poder social, Joseph (1987:55) remarca
também o paradoxo que surge na codificação escrita das variedades crioulas semelhantes
a uma língua escrita alta. Por uma parte, o objectivo das elites é
desenvolverem um código ausbau (como língua por elaboração) para
funções até então ocupadas pela língua superposta. Mas, na ausência (ou rejeitamento
explícito) de um modelo externo em que basear a elaboração, a necessária
homogeneização escrita da hetereogénea fala vai levar a formas e soluções
inevitavelmente semelhantes às de aquele modelo que supostamente se tenta evitar.
O mesmo acontecerá num sistema sociolinguístico de continua
de variedades, como o da Galiza (Álvarez Cáccamo 1989), quando se tomarem como base da estandardização as
versões mais próximas do sistema dominante, o espanhol. Inevitavelmente, apesar das
doses requeridas de diferencialismo (com soluções do tipo come-lo caldo), afinal
serão adoptadas soluções alheias ao grosso das variedades orais mais afastadas do
modelo dominante. O resultado pode ser um duplo estândar escrito (o da língua
tradicionalmente superposta e o da nova norma autóctone) praticamente indistinguível
de um ponto de vista global. A longo prazo, uma das normas pode se fazer desnecessária.[8]
A situação do crioulo jamaicano --de base inglesa--,
tanto o falado na Jamaica como nas Ilhas Britânicas pelos imigrantes, é um destes casos,
e corre paralelo ao galego. Perante a falha de uma tradição escrita, os praticantes da
escrita em crioulo oscilam entre uma representação próxima do inglês estândar e uma
representação diferencialista. Um resultado desta opção diferencialista é que, quando
se querem representar termos que se pronunciam igual em crioulo e em inglês estândar (ou
mesmo termos exclusivamente ingleses), estes aparecem representados como formas
alheias. Assim, o pronome inglês de objecto me [mi] mim, a mim
pode aparecer por hiperdiferencialismo
[7] As próprias etiquetas
identificativas das variedades reflectem, sem dúvida, as ideologias linguísticas dos
seus usuários. Em Cabo Verde, as etiquetas comuns para as variedades de crioulo
cabo-verdiano são as de crioulo leve e crioulo fundo (acrolecto e
basilecto, respectivamente). Na Galiza, entre o espanhol ou
castelhano e o galego situam-se realidades e conceitos como o
gallego, o galego de escola, o castrapo, o mal
galego, etc. Deste paradigma de termos referidos à fala fica excluído geralmente o
português, excepto para designar pejorativamente falares costeiros da franja
sul das Rias Baixas.
[8] No caso galego, isto implica
questionarmos a viabilidade, a longo prazo, de uma situação onde uma única língua abstand,
por distância (o português) tem duas formas ausbau por
elaboração (a norma portuguesa e a galega), como sustêm algumas teses (Fernández
Rei 1993:111s). A unidade linguística do
português, reconhecida explicitamente nestas teses, não é o problema: De uma
perspectiva estritamente linguística, podemos admitir que o galego e o português falados
hoje constituem praticamente uma única e mesma língua abstand (Dans
une perspective strictement linguistique, nous pouvons admettre que le galicien et le
portugais parlés aujourdhui constituent pratiquement une seule et même langue
abstand; Fernández Rei 1993:111). O problema é conciliarmos esta
identidade linguística com um modelo de codificação desenhado para emular as funções
de uma língua abstand exógena (o espanhol), e construído sobre a base gráfica
desta. Sobre a questão, ver Herrero Valeiro 1993.
p. 147 |
como mee para distingui-lo da forma crioula de sujeito e
objecto mi, também [mi] eu, mim. Um exemplo comparável é o uso do h
no dígrafo gh da norma elaborada pelo Instituto da Lingua Galega para
representar a gheada (o ghato) ou o [x] (e variantes) dos empréstimos do
espanhol assimilados na fala (a gherra, a gheografia); em sentido estrito, o
gh é desnecessário, dada a inexistência das combinações ge, gi
na mesma norma. O dígrafo gh, porém, decerto tem sentido para representar
dialectalismos ou empréstimos se empregarmos a grafia portuguesa padrão, onde ge,
gi correspondem a [ e,
i], ou [ e, i] na Galiza.
As diversas opções ortográficas, portanto, reflectem a
própria concepção da fala dentro do panorama sociolinguístico geral. Mais
especificamente, dentro do continuum de variedades geográficas, sociais e
contextuais da Galiza, a eleição das formas mais próximas da língua escrita dominante
levanta problemas adicionais para o reconhecimento e identificação do próprio dentro do
panorama linguístico do planeta.
Em qualquer caso, nas situações inerentemente
inestáveis, como a de muitos idiomas crioulos ou a nossa própria situação, existe uma gradação
de variedades orais e escritas. Quanto às variedades escritas, Schieffelin e Doucet
(1992:431) mencionam a existência de onze sistemas ortográficos distintos para o
crioulo haitiano em 1980. Na Galiza, ainda que um primeiro exame pode arrojar uma cifra de
quatro normas escritas bem diferenciáveis, uma análise mais exigente indicará
que, como veremos, na realidade existem pelo menos dez normas suficientemente
coerentes.
O importante é que as variedades sistemáticas destes
contínuos são de facto reconhecíveis apenas por uns poucos traços simbolicamente
relevantes. Neste ponto, as ideologias linguísticas jogam, sem dúvida, um papel
crucial à hora de agruparmos os exemplos dos contínuos em sistemas discretos
segundo os seus traços diferenciais. Assim, segundo Sebba (1995), o ponto de inflexão
entre inglês e crioulo jamaicano na escrita parece ser a representação categórica de
apenas dois traços fonéticos: (1) a transcrição das oclusivas dentais [t], [d] em
lugar de [ ], [ð] (mout,
dis por mouth, this, boca e isto
respectivamente); e (2) o inserimento das semiconsoantes [j], [w] em certos entornos: I
cyan por I cant não posso, bwoy por boy
moço. [9] No caso da escrita na
Galiza, o ponto de inflexão entre o simbolicamente galego e o simbolicamente
português pode-se situar na presença do ç, do ss ou talvez do
til nasal em ã, õ. [10] Por
exemplo, é evidente que na actualidade ninguém identificaria um texto escrito na norma
chamada de mínimos como português. Contudo, o realmente
significativo é que qualquer dos três pontos citados de
[9] Reparemos, de novo, em que tanto
o [j] quanto o [w] são também inseridos nas formas citadas em falas dialectais
americanas (por exemplo, no dialecto dos afro-americanos) sem sistema ortográfico
próprio.
[10] Esta última interpretação é
a que sustém, por exemplo, Vidal Bouzón (1994).
p. 148 |
inflexão galego / português coincide
assim mesmo com a fronteira simbólica espanhol / português. [11]
Uma incursão nas características dos chamados contínuos
crioulos (Bickerton 1973) contribuirá
para iluminarmos com mais detalhe os argumentos anteriores. Os contínuos crioulos, [12] típicos da área do Caribe, são situações
de estruturação gradual e escalonada de variedades orais, desde as mais semelhantes à
antiga língua colonial ou acrolecto até às mais próximas do crioulo original ou
basilecto. Tipicamente, estes contínuos sucedem a uma situação de contacto
relativamente estável entre a língua alta dos colonizadores e o crioulo
desenvolvido entre os escravos das plantações. [13]
O contínuo é resultado da maior mobilidade e interacção entre grupos sociais, de
maneira que a pressão constante da língua alta tende a descrioulizar o crioulo,
que se fragmenta seguindo cortes generacionais en variedades gradualmente mais semelhantes
à língua alta; esta, pela sua parte, permanece basicamente inalterada dado o seu alto
grau de estandardização prévia.
O destino destes contínuos (a pervivência da variação
ou a descrioulização total da fala na direcção da língua superordinada) depende em
parte da pressão do padrão público (oral e escrito) e do valor simbólico identitário
do(s) crioulo(s). De facto, nalguns casos os crioulos (o de base inglesa de Belize ou, em
menor medida, o papiamentu de base portuguesa-holandesa de Curação) servem para
galvanizar a identidade grupal em torno de um projecto dirigido de construção estatal. [14]
O instrumento sociolinguístico da escala
implicacional, aplicado por Bickerton (1973) para representar visivelmente a
variação gradual do contínuo crioulo de Jamaica, pode-se adequar com produtividade à
situação galega para refinarmos a descrição do contínuo de normas escritas
usadas com maior ou menor êxito ou frequência na Galiza por criadores, investigadores e
meios de comunicação escrita. Na Tabela 1, semelhante a uma escala implicacional,
aparecem distribuídos os traços diferenciais das normas escritas em uso na Galiza (desde
o espanhol padrão até ao português padrão) num ordenamento gradual. Incluem-se
[11] Um visível ponto de inflexão
diferencialista entre catalão e espanhol situa-se, mais que no dígrafo ny
(combinação existente em espanhol, p. ex. inyectar), no uso do idiosincrássico
ponto elevado para a consoante geminada /ll/ (parallel), que
hiperdiferencializa o catalão de todas as outras línguas do planeta. No caso do euskara,
um ponto de inflexão é a renúncia ao c em favor do k, e, sobretudo, a
cunhação dos grupos tz, ts e tx para representar o sistema de
africadas. Recentemente, o euskara batua eliminou o uso de ñ para substitui-lo
pelo dígrafo ni. Além disso, por carência de outro modelo próximo no espaço ou
no tempo, a maior parte das restantes soluções do euskara são compartilhadas com o
espanhol.
[12] Ou pós-crioulos, v.
DeCamp 1971. DeCamp refere-se
especificamente a processos de descrioulização em curso.
[13] Neste sentido, tem-se
argumentado precisamente que alguns traços fonéticos e sintácticos do inglês
afro-americano actual (Afro-American English ou Black English Vernacular) se
explicam por um desaparecido (ou assimilado) estadio crioulo da fala dos escravos
africanos em Norteamérica.
[14] Tabouret-Keller e LePage
(1985:219-220) referem factos sumamente significativos quanto ao papel da nova
língua belizenha na criação da identidade nacional de Belize. Num
inquérito de 1971, só um homem, de considerável fortuna económica, declarava ele e a
sua familia serem belizenhos. Depois da independência do país, um inquérito
semelhante de 1978 arrojava 7 auto-definições como belizenho/a. Nesta mesma
época, o crioulo belizenho era já referido como a língua belizenha, e
identificado como a língua habitual de dois terços das famílias observadas. Para além
disto, nessa altura o termo belizenho começou a designar identidade
nacional/estatal à margem de origem étnica ou racial: Sejam quais forem a tua cor
ou a tua raça, tu és belizenho/a por nasceres aqui (No matter what
colour, what race, you are a Belizean if you are born here). Todas as
traduções são nossas.
p. 149 |
TABELA 1
|
y/Ø |
le-lo/
ler o |
ó/
ao |
-able/
-ábel/
-ável |
-ía/
-ia |
-oria/
-ória |
-alo/
-á-lo |
-ces/
-zes |
á/
à |
Ø/j |
Ø/ç |
ñ/nh |
ll/
lh |
unha/
umha/
uma |
Ø/ê |
s/ss |
-óns/
-ons/
-ões |
-on/
-om/
-ão |
-an/
-am/
-ão |
-act-/
-at- |
ESP |
y |
(leer la ley) |
(al) |
amable |
día |
gloria |
(amarlo) |
luces |
(a la) |
j |
Ø |
Miño |
Ulla |
(una) |
Ø |
paso |
razones |
son |
pan |
acto |
ILG 1 |
Ø |
le-la lei |
ó |
amable |
día |
gloria |
amalo |
luces |
á |
Ø |
Ø |
Miño |
Ulla |
unha |
Ø |
paso |
razóns |
son |
pan |
acto |
ILG 2 |
Ø |
ler a lei |
ó/ao |
amable |
día |
gloria |
amalo |
luces |
á |
Ø |
Ø |
Miño |
Ulla |
unha |
Ø |
paso |
razóns |
son |
pan |
acto |
ILG 3 |
Ø |
ler a lei |
ao |
amábel |
día |
gloria |
amalo |
luces |
á |
Ø |
Ø |
Miño |
Ulla |
unha |
Ø |
paso |
razóns |
son |
pan |
acto |
MIN 1 |
Ø |
ler a lei |
ao |
amábel |
dia |
glória |
amalo |
luces |
á |
Ø |
Ø |
Miño |
Ulla |
unha |
Ø |
paso |
razóns |
son |
pan |
acto |
MIN 2 |
Ø |
ler a lei |
ao |
amábel |
dia |
glória |
amá-lo |
luces |
á |
Ø |
Ø |
Miño |
Ulla |
unha |
Ø |
paso |
razóns |
son |
pan |
acto |
MIN 3 |
Ø |
ler a lei |
ao |
amável |
dia |
glória |
amá-lo |
luzes |
á/à |
Ø |
Ø |
Miño |
Ulla |
unha |
Ø |
paso |
razóns |
son |
pan |
acto |
ASPG 2 |
Ø |
ler a lei |
ao |
amável |
dia |
glória |
amá-lo |
luzes |
à |
j |
ç |
Minho |
Ulha |
umha |
Ø |
paso |
razons |
som |
pam |
acto |
AGAL 1 |
Ø |
ler a lei |
ao |
amável |
dia |
glória |
amá-lo |
luzes |
à |
j |
ç |
Minho |
Ulha |
umha |
ê |
passo |
razons |
som |
pam |
acto |
AGAL 2 |
Ø |
ler a lei |
ao |
amável |
dia |
glória |
amá-lo |
luzes |
à |
j |
ç |
Minho |
Ulha |
umha |
ê |
passo |
razões |
som |
pam |
acto |
PORT 1 |
Ø |
ler a lei |
ao |
amável |
dia |
glória |
amá-lo |
luzes |
à |
j |
ç |
Minho |
Ulha |
uma |
ê |
passo |
razões |
são |
pão |
acto |
PORT 2 |
Ø |
ler a lei |
ao |
amável |
dia |
glória |
amá-lo |
luzes |
à |
j |
ç |
Minho |
Ulha |
uma |
ê |
passo |
razões |
são |
pão |
ato |
p. 150 |
só dados dos sistemas ortográficos que apresentam uma mais clara
coerência interna, etiquetados para este propósito com uma notação meramente
identificativa. Situa-se na parte superior da escala a norma espanhola (equivalente ao
padrão alto nos contínuos orais). É esta norma a que tem fornecido a base
principal para as soluções escritas na Galiza desde o desmembramento do universo escrito
galego-português. Na parte inferior da escala situa-se a norma portuguesa, fornecedora
das soluções históricas hoje minoritárias.
A caracterização dos sistemas de normas
escritas é a seguinte. ESP é o espanhol padrão. ILG 1, ILG 2 e ILG
3 são variantes permitidas e documentadas das normas elaboradas pelo Instituto da
Lingua Galega e a Real Academia Galega (ILG-RAG 1982). MÍN 1 é a norma chamada de
mínimos utilizada, por exemplo, na publicação A Nosa Terra; MÍN 2
é a norma empregue pela Mesa pola Normalización Lingüística, e MÍN 3 é
a usada isoladamente por alguns autores (nomeadamente criadores literários). ASPG 2
e[ra] a proposta reintegracionista, hoje desaparecida, da [então chamada] Asociaçom
Sócio-Pedagógica Galega (ASPG 1982);
inclui-se apenas como exemplo da redução de variedades que se vem observando neste
contínuo escrito. [15] AGAL 1 e AGAL
2 são opções das normas da Associaçom Galega da Língua (AGAL 1983), da sua publicação Agália, e
de alguns dos chamados grupos reintegracionistas de base. PORT 1 é o
português padrão de Portugal, e PORT 2 é o mesmo, incorporando opções
recolhidas no Acordo Ortográfico de 1991, vigorado no 1994; ambas são utilizadas
pelos membros de diferentes grupos reintegracionistas como a Associação de Amizade
Galiza-Portugal e das Irmandades da Fala, [pela Associação
Sócio-Pedagógica Galego-Portuguesa] e por autores isolados (criadores literários e
intelectuais).
Observem-se os limites entre as variedades. À margem de
algumas ilhas ou desvios de variantes delimitadas tanto por acima como por
abaixo (a variante amábel e o dígrafo mh), observamos uma distribuição
gradual dos traços ao longo dos sistemas, desde o mais particularista do espanhol padrão
até ao mais particularista do português padrão. O sistema ILG 1 representaria
(por aplicar o termo da crioulística) a variante acrolectal do contínuo,
quer dizer, a mais semelhante à norma exógena, e, nesse sentido, a mais prestigiosa. [16]
A Tabela 2 representa o contínuo de traços
ortográficos do português presentes (+) ou ausentes (-) nas diversas normas da Galiza.
As variedades com menor presença de traços portugueses são, logicamente, as mais
próximas do padrão ortográfico espanhol. Em cada exemplo, indicam-se em negrilha
as variantes gráficas ou morfológicas que interessam:
[15] Chamamo-las ASPG 2 em
oposição às normas da [actual] Asociación Sócio-Pedagóxica Galega, que se
correspondem com MIN 2.
[16] É necessário aclarar que a
escala não pretende reflectir a distribuição de utentes de um ou outro sistema.
Contudo, parece evidente o domínio quantitativo na Galiza dos sistemas ortográficos
basicamente espanhois (incluindo, claro está, o próprio espanhol padrão) e,
consequentemente, a posição minorizada do sistema ortográfico português.
p. 151 |
TABELA 2
|
comer o caldo |
|
dia
lua
hist
conflito
produto
coluna
caíamos
éramos |
amá-lo
senti-lo |
luzes
seduzir
livro
amável
visível
cantava |
|
umha
afam
cançom |
filha
Minho
gente
amais
comem
quando |
passo
paço
câmbio
ciência
pôr |
razes |
uma
af
canção |
atuar
objeto |
ILG 1 |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
ILG 2 |
+ |
+/- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
ILG 3 |
+ |
+ |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
MIN 1 |
+ |
+ |
+ |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
MIN 2 |
+ |
+ |
+ |
+ |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
MIN 3 |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+/- |
- |
- |
- |
- |
- |
- |
ASPG 2 |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
- |
- |
- |
- |
AGAL 1 |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
- |
- |
- |
AGAL 2 |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
- |
- |
PORT 1 |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
- |
+ |
+ |
+ |
+ |
- |
PORT 2 |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
- |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
p. 152 |
A escala da Tabela 2 deve
interpretar-se como segue: o uso na escrita de um signo gráfico, traço ou variante
morfológica situados à direita da escala implica geralmente o uso de outro traço
situado mais à esquerda, mas não necessariamente à inversa. Por exemplo:
a acentuação dos esdrúxulos do tipo -ório implica o uso da forma plena ao (MÍN
1,2,3 ao sanatório), mas o uso de ao não necessariamente implica a
acentuação -ório: na opção ILG 2 escreve-se ao sanatorio;
o uso de j implica o uso de à (PORT 1,2 jamais foi à cidade), mas não
viceversa: os usuários da norma MÍN 3 (alguns autores literários, especialmente
poetas) escreveriam xamais foi à cidade;
o uso de ã implica o uso
de õ (PORT 1,2 mãos, pães, razões), mas õ não implica ã
(AGAL 2 maos, pans, razões).
Finalmente, a Tabela 3 esquematiza o que parecem
ser as marcas gráficas exclusivas, obrigatórias e diferenciais
(dentro do contexto galego) de quatro sistemas em uso do contínuo escrito, só para as
vozes patrimoniais; as marcas são equivalentes dos símbolos particularistas ll
do catalão, ø do dinamarquês, å do sueco, etc.:
TABELA 3
|
y |
ï |
mh |
ã |
ESP |
+ |
- |
- |
- |
ILG |
- |
+ |
- |
- |
AGAL |
- |
- |
+ |
- |
PORT |
- |
- |
- |
+ |
O espanhol padrão (ESP) é o
único sistema que tem y; o sistema ILG e variantes é o único que propõe
o uso de ï em certas formas verbais (bastante infrequentes) de hiatos (saïamos,
português padrão saíamos); o sistema AGAL e variantes é na actualidade o
único que usa o produtivo dígrafo mh (umha, algumhas); [17] e o português padrão e variantes (PORT)
é o único que utiliza ã.
Significativamente, os sistemas que demos em chamar MÍN
não apresentam sinais de identidade isolados e específicos. Cumpre
perguntar-se sobre a relação entre esta ausência de marcas simbólicas diferencialistas
e a possível viabilidade de sistemas como MÍN (ou o evidente fracasso de sistemas
como ASPG 2). A meio e longo prazo, é possível que o rango de variedades se redu-
[17] No já inexistente ASPG 2
utilizava-se também o dígrafo mh.
p. 153 |
za pela sua zona central, especialmente a partir da clara fronteira
formal MÍN / AGAL. [18] De
facto, dado também o diferente peso simbólico dos traços diferenciais (abundância de x,
uso de ñ ou ç, acentuação, etc.), é duvidoso que as etiquetas propostas
pelos próprios utentes de um sistema dado se correspondam sempre com a percepção
pública da sua escrita. A norma MÍN, por exemplo, talvez represente em menor
medida uns supostos mínimos do reintegracionismo do galego com o
português do que uns máximos do diferencialismo do galego a
respeito do espanhol. No mesmo sentido, a norma AGAL, baptizada como
máximos do reintegracionismo, pode-se ver na realidade como mínimos do
diferencialismo do galego a respeito do português (v. neste sentido
Herrero Valeiro 1993; Vidal Bouzón 1994).
Porfim, e por continuarmos com um paralelo anterior, em
que medida este contínuo de escritas progrida até à metafórica
descrioulização numa direcção ou outra (português padrão ou espanhol
padrão) dependerá, como no caso dos contínuos pós-crioulos orais, das pressões
respectivas do padrão espanhol e do padrão português na Galiza. Sem dúvida,
precisam-se estudos detalhados sobre a distribuição relativa das opções escritas por
grupos de utentes. Porém, aqui interessava-nos evidenciar apenas a existência de
multíplices lectos escritos cujo uso público por grupos sociais pode
corresponder-se (e, de facto, nalguns casos se corresponde, v. Herrero Valeiro 1993) com
um posicionamento ideológico e identitário determinado. Assim, para além de
manifestações da variação inerente às situações sociolinguísticas inestáveis como
a galega, os sistemas ortográficos são índices de identidade. Como afirmam
Schieffelin e Doucet (1992:427), nós propomos as ortografias em conflito serem
concebidas como arenas para identidades em conflito. [19] Na medida em que estas identidades tiverem um espaço
social, as ortografias que as marquem indexicamente serão resistentes ao disciplinamento
correctivo e à extinção. Isto é: o número de utentes públicos de um ou outro sistema
poderá aumentar ou diminuir segundo as circunstâncias sociais; mas, enquanto exista,
cada norma manterá um valor diferencial dado (e oposicional) de identificação grupal.
As fronteiras do contraste e reconhecimento simbólico
das variedades de um continuum escrito são variáveis e historicamente
contingentes, isto é, sujeitas sobretudo às práticas da escrita e às pressões dos
grupos em pugna pelo controlo da língua. Sem dúvida, um instrumento fundamental para
delimitarmos essas fronteiras desde a coerência ideológica de cada um é a prática da
escrita. Neste campo os escritores, educadores e outras elites
[18] Por exemplo, na actualidade
(1996), a Asociación Sócio-Pedagóxica Galega, até agora utente habitual de MIN
2, está a publicar uma Historia da Literatura Galega (sem ajuda institucional
da Xunta de Galicia) onde se emprega basicamente ILG 3 com redução dos
grupos cultos, do tipo estrutura ou conflito.
[19] We propose that
contested identities be viewed as sites of contested identities.
p. 154 |
alfabetizadas têm a responsabilidade de reflexionarem sobre as
possíveis implicações e custos a longo prazo da sua prática, que não consiste só em
eles criarem mundos imaginários (ou em transmiti-los), mas também em contribuírem para
a formação da identidade através do reconhecimento colectivo na língua escrita.
Outro labor fundamental para obter soluções produtivas
a longo prazo para o problema da escrita corresponde-lhes aos linguistas e
sociolinguistas: o explorarem, como nós tentámos fazer neste trabalho, as vinculações
entre formas de glotodiversidade escrita, ideologias e formas de identidade
(incluindo, por exemplo, o campo das vinculações entre as práticas e discursos de
organizações e grupos de base de activismo linguistico e os projectos susteníveis de
identidade colectiva). Numa formulação geral, Woolard (1992:243) salienta a importância de examinarmos estas
questões e de respondermos a perguntas como as seguintes:
Em debates politizados sobre a verdadeira língua nacional, os
verdadeiros padrões linguísticos, etc., que traços linguísticos se
apreendem, e através de que processos semióticos se chegam a interpretar como
representativos da colectividade? Há uma hierarquia de traços linguísticos
susceptíveis de tal ideologização? [20]
Nós tentámos mostrar os traços linguísticos escritos
que são apreendidos como representativos da colectividade segundo diversas concepções
da língua, e sugerimos que tal hierarquia entre traços existe. Na conexão entre
práticas linguísticas e ideologias à que aponta este trabalho, o passo seguinte seria
desvelarmos as vicissitudes do possível efeito da teoria (ou, mais
precisamente, do efeito da ideologia) sobre a realidade da escrita. Isto é,
em que medida as ideologias linguísticas promovem práticas que, à sua vez, reforçam a
validade de tais ideologias? Como aponta Rumsey (1990:357),
a estrutura [linguística] fornece categorias formais de um tipo que conduzem
especialmente ao des-reconhecimento [misrecognition] [da língua]. E,
em parte como resultado deste des-reconhecimento, não poderia acaso mudar o sistema
linguístico gradualmente até se aproximar de aquilo com o qual foi
des-reconhecido? [21]
AGAL [Associaçom Galega da Língua]. 1983. Estudo crítico das Normas ortográficas e
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Álvarez Cáccamo, Celso. 1993.
The pigeon house, the octopus, and the people: The ideologization of linguistic practices
in Galiza. Plurilinguismes 6, 1-26.
[20] In politicized contests
over the true national language, standards, etc., which linguistic features
are seized on, and through what semiotic processes are they interpreted as representing
the collectivity? Is there a hierarchy of linguistic features open to such
ideologization?.
[21] ...the structure
provides formal categories of a kind that are particularly conducive to
misrecognition. And partly as a result of that misrecognition, might not the
linguistic system gradually change so as to approximate that for which it was
misrecognized?.
p. 155 |
ASPG [Asociaçom Sócio-Pedagógica Galega]. 1982. Orientaçóns para a escrita do noso idioma.
Ourense: Galiza Ed.
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La place de la langue galicienne dans les classifications traditionnelles de la Romania et
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