O. Em
contra do que alguns com obstinada tenacidade ignoram, outros sabemos que
a da orthographia não é apenas, nem sequer fundamentalmente,
uma questão técnica.
Índice de especificidade e
de afirmação nacional, a ortografia é uma questão
que, como tudo o que atinge à língua, suscita reacções
emotivas. Recorde-se, por exemplo, a resposta, fervorosamente patriótica,
dos media espanhóis, tão inclinados à perplexidade
hostil perante às reinvindicações linguísticas
periféricas, aos boatos que ameaçavam a
pervivência do eñe, emblema ortográfico castelhano.
Ou pense-se que, na Catalunha de princípios de século, a
controvérsia acerca de i ou y (conjunção
copulativa) tornou algumas amizades de longa data em cenreiras
implacáveis.
O carácter distintivo e
delimitador da ortografia é particularmente evidente nas
situações de contacto linguístico em que os utentes
de uma das línguas sentem a necessidade de marcar a distância
em relação à outra. Esta necessidade é tanto
mais intensa quanto menor é a distância estrutural entre as
línguas em contacto. Tenta-se, então, em primeiro lugar,
diferenciar quanto possível no plano gráfico a língua
em questão em ordem a tornar mais visível a sua diferença
e, em segundo lugar, capitalizá-la simbolicamente de modo prestigiante
e singularizador.
1. O caso da língua portuguesa
é exemplar neste sentido. Numa altura (séculos XVI e XVII)
em que o castelhano se instala em Portugal como língua cortesã
e literária, os defensores do vernáculo nativo devem
esforçar-se em distingui-lo (nos dois sentido da palavra) do
concorrente.
E se, conforme à impressão
comum, expressa por Juan de Valdés, a língua portuguesa
tiene más de castellano que las otras [isto é catalão
e valenciano] tanto que la principal diferencia que a mi parecer se halla
entre las dos lenguas es la pronunciacíón y la
ortografía (1), cumprirá, justamente, acentuar e positivizar
a diferença ortográfica.
Em busca de uma especificidade lusitana,
salienta-se (e, em certos casos, força-se mesmo) positiva e
estrategicamente um parecido com o latim, ressaltando, assim, a afinidade
e a filiação e, com elas, a dignidade e a individualidade da
língua portuguesa:
Grande he a contenda entre os peritos, se hemos de usar de
aõ, se de am, ou seja os nomes Perdigaõ,
ou nos verbos, amaraõ, amaram. Nam me atrevo a condenar
o vulgar modo de escrever aõ, usado de muytos; mas sou do parecer
que usemos de am; porque além do aõ demandar
diversas pronuncias, por razam do ao junto com til, que tem
força de m, e fica soando aom. Se usarmos de
am, nos assemelhamos aos latinos, os quays põem, am:
musam, legebam [...]. E nesta forma semelhantes aos latinos
melhor responderemos a ordinaria objecçam, que põem os Castelhanos
á nossa língua tachandoa de grosseyra, dãdo-nos em rostos
cada dia com os nossos aõ, aõ, [...].
Respondendo logo que nisso nos ficamos parecendo mais ao latinos do que
elles se parecem; porque os latinos acabavão frequentemente seus
vocábulos de toda sorte em am [...], nós assim queremos
acabar, para ficarmos mays semelhantes a Latinos, particularmente Romanos,
do que os Castelhanos [sublinho] (2).
2. Na Galiza dos séculos
XVI e XVII a questão da escrita correcta nem sequer se suscita,
simplesmente porque o galego já não se escreve. Quando, desde
a segunda metade do século XIX, reapareça uma literatura no
dialeuto regional e se coloque, pela primeira vez, a questão
da sua ortografia, a interrupção secular da tradição
escrita, a castelhanização das classes dirigentes e a
satelização linguística determinarão a
adopção pura e simples da ortografia da língua
oficial.
Assim, na primeira gramática galega
(3) a questão da escrita não é objecto de reflexões
ou comentários. Trascreve-se o galego ao jeito castelhano,
simplesmente.
Na segunda, a Gramática Gallega
(4), de Juan A. Saco Arce, que é, na realidade, a primeira digna de
ser chamada gramática, obra infinitamente superior do ponto de vista
descritivo e informada de intuitos patrióticos, a questão
ortográfica merece cinco páginas de atenção.
Saco parte do pressuposto de que [são] aplicables casi en su
totalidad á la ortografía del dialecto gallego, en lo relativo
al uso de las letras y á la puntuación, las reglas de la
ortografía castellana. Portanto, o assunto pode ser despachado
logo, limitando-se a hacer algunas advertencias sobre las letras
i-y, n-m, x, sobre los acentos y algun otro signo
(5).
Acerca do suave sonido de la
ch francesa, propio también de nuestro dialecto, escreve:
[...] nos parece que debe representarse constantemente por la letra
x. Algunos hay que sostienen la necesidad de atender á la
etimología para usar la g, la j ó la x
en la representación de dicho sonido. Pero siendo sumamente vario
el origen latino de este, resultarían gravísimas dificultades
para el estudio de la ortografía gallega (6).
Saco parece querer reduzir a questão
da ortografia a um assunto meramente técnico-prático Com efeito,
são tecnicamente aplicáveis ao galego as regras gráficas
do castelhano; com efeito, distinguir ortograficamente j, g
e x é praticamente mais dificultoso do que usar apenas
x (7). E se para quase todos os potenciais receptores da
Gramática o galego é um idioma mais ou menos familiar,
mais ou menos contaminado, para todos o castelhano é a única
língua escrita.
Saco é testemunha perspicaz
e magoada tanto da estigmatização social do galego como da
acção destruidora que exerce sobre ele o contacto com a
língua oficial: la lengua gallega [...] tiempo ha que viene
sufriendo una lenta, pero incesante destruccion, merced al contínuo
roce con la lengua oficial y clásica de los españoles,
diz no Prólogo. Porém, conjugando hierarquicamente patriotismo
provincial-galego e nacional-espanhol, é incapaz de tirar as
conclusões lógicas da sua observação e apressa-se
a dissipar os receios dos que consideram que o cultivo dos dialectos regionais
poderia actuar em detrimento da unidade nacional:
No es mi ánimo con esto excitar al abandono ó descuido
del majestuoso idioma castellano, el cual lejos de perder, ganaría
mucho con el estudio y comparación de los dialectos afines
(8).
Desta contradição nasce outra:
embora plenamente consciente de que, por filiação, o galego
é uma língua de pleno direito como as outras neo-latinas (às
que repetidamente acode para assinalar afinidades nobilitadoras com o galego),
politicamente, em Espanha, a língua é o castelhano.
Destarte, se do ponto de vista linguístico, o galego é uma
entidade autónoma, como o francês ou o italiano, do ponto de
vista político é o dialecto de uma província,
um sub-conjunto do espanhol. Não resolve a contradição.
De onde a flutuação de denominações referidas
ao galego: idioma, dialecto, língua,
língua regional, conforme se encare de um ponto de vista
ou de outro.
Isto explica, e volto à ortografia,
que, na realidade, o aspecto técnico da questão ocupe um segundo
plano. Porque para Saco o essencial é que a autoridade da Real
Academia Española de la Lengua é guia também para
o galego: Parécenos por tanto que el sonido gallego equivalente
á la ch francesa debe representarse, cualquiera que sea su
etimología, con un mismo signo; y ninguno creemos mas á
propósito que la letra x, ya que es la letra castellana,
cuyo sonido imita mas al nuestro; ya porque, segun la autorizada opinion
de la Academia (en las primeras ediciones de su Diccionario), tuvo
aun en castellano antiguamente este mismo sonido;[...] [sublinho],
escreve no Prólogo.
Longe do meu pensamento a suspeita de que
os legisladores linguísticos galegos de hoje continuem ainda sob a
tutela da Academia Espanhola. No entanto, faço notar que nas normas
da língua galega em vigor, no que se refere ao alfabeto, as únicas
concessões à etimologia (b/v e h) coincidem com
as do espanhol. |
(1) Diálogo de la lengua, edição
de Cristina Bartolini, Madrid, Cátedra, 1987, p.141. A obra, redigida
c. 1550, foi impressa pela primeira vez em 1737.
(2) Padre Bento Pereira, Regras gerays, breves e comprehensivas
da melhor orthographia, com que se podem evitar erros no escrever da lingua
latina e portuguesa, para se ajuntar à prosodia, Lisboa, por Domingos
Carneiro, 1666, pp. 64-5.
(3) Francisco Mirás, Compendio de gramática
gallega-castellana, con un vocabulario de nombres y verbos gallegos y su
correspondencia castellana, precedido de unos diálagos [sic]
sobre diferentes materias [...], Santiago, Establecimiento
tipográfico de Manuel Mirás. 1864.
(4) Juan A. Saco Arce, Gramática Gallega, Lugo,
Imprenta de Soto Freire, 1868.
(5) Op. cit., p. 227.
(6) Ibidem.
(7) No galego moderno, como se sabe, perderam-se as sibilantes
sonoras. Assim, por exemplo, o j de jeito articula-se como
o x de caixa. De facto, na ortografia oficial, jeito
escreve-se xeito, gente como xente,
etcétera.
(8) Op. cit., p. VII. |