Pensamento, crítica e criação em galego-português
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Auto-retrato
Carmen Panero
Não me estranharia que, ironicamente, o autor concebesse esta
personagem com certos caracteres da sua própria personalidade. Eu
adoptei-no como uma burla dos meus projectos de escritora numa
noite de Agosto em que decidi, com a resignação do escritor
frustrado, que não ia acabar jamais certa carta.
Geralmente as leituras acodem-me de conforto. Mas o conto de
Monterroso, desta vez, vinhera a aumentar o meu afundamento.
Quando o topei, com a renovada surpresa com que sempre me dão os
livros a resposta que eu andava buscando, em lugar da luz, o
que surgiu foi uma sombra chinesa que me saudava botando-me a
língua. Não havia uma só desculpa de Leopoldo que eu não
utilizasse comigo mesma! A citação da idade de Cervantes! Todas!
Comigo e com os íntimos mais confiados no meu futuro. E, claro,
pior do que Leopoldo, que não terminava os contos: Eu agora já
não terminava as cartas!
Como a personagem de Monterroso encontro de cotio assuntos
noveláveis. Depois, desenvolvê-los já é outra cousa. Aquele mesmo
dia, sem ir mais longe, estivera matinando no seguinte: a
protagonista do meu próximo relato trabalharia como leitora duma
dama adinheirada; as leituras, que ela iria elegendo
cuidadosamente, seriam o fio no que se enrestiariam as ideias da
leitora e o passado da dama, e iriam medrando ao tempo que se
estreitava a amizade das duas mulheres. Mas, igual que a
Leopoldo, acontece-me a mim que asinha se me atravessa o novo
assunto entre os velhos e de contado pensei que a minha dona rica
bem poderia verificar aqueloutro projecto latente da Casa de
Ponte-Vedra habitada e desabitada centos de vezes na minha
imaginação.
A personagem Leopoldo também fazia um diário medíocre no que,
carecendo de aventuras interessantes, apontava as horas de se
erguer e se deitar, ademais das notas dos diversos temas com que
se ia topando. Escuso dizer que este espelho seu também me
identificava, com a mesquinha ressalva de que no texto dele havia
faltas de ortografia que eu presumia de não cometer; para além
disso, de ele ter uma história que contar, se a energia para
escrever lhe sobrevinhesse, ainda devia passar pola síntese, a
antítese, a correcção do estilo, o dicionário, fases que eu
conhecia tão bem como as escusas desde muito antes de ler o
conto.
Nesse conto encarna-se, sem dúvida, uma sátira do escritor e, ao
mesmo tempo, hai um incitante exercício de estilo onde as
diferentes versões dum argumento mínimo são a chave dos mais
surpreendentes efeitos. Numa delas, por exemplo, cita-se a
Shakespeare em prol da constante reaparição de determinados
assuntos na arte e na literatura. Por casualidade, numa tertúlia
recente, tratara-se da mesma citação em termos parecidos, quando
alguém lembrou a história de Montescos e Capuletos havida no
passado legendário da sua família, lá em Bóveda entre o Freituxe
e o Canedo que apartaram para sempre os seus avôs. Não sei se
algum outro tertuliano, aparte de mim, acariciou aí um projecto
literário. Mas quando a lim no livro de Monterroso, como ele para
com Leopoldo, perguntei-me também eu, no fogo cruzado dos
argumentos, se eu gostava certamente de escrever ou se padeceria
o terror do papel em branco. Contudo, o feito de vencer a abulia
contra o relógio, como nesse mesmo momento ao resenhar o escrito,
e o repouso da memória satisfeita com as anotações acalmavam a
minha consciência antes do sono igual que lhe acontecia à
personagem.
No que atinge Monterroso, bem sei como as suas obras, longas ou
breves, o preservam desta história. É memorável a sua maestría de
síntese na famosa criação do relato mais miúdo da literatura
espanhola, que não ocupa mais do que uma linha e se chama O
DINOSSAURO: Quando acordou, o dinossauro estava ainda ali. (2)
Ao achar esse relato junto ao de Leopoldo, no meu naufrágio,
acordou-me a mim outra experiência descoroçoadora: durante um
curso de psicologia convidaram-nos às participantes a escrevermos
um conto encabeçado pola frase Era-se uma vez uma meninha....
As minhas companheiras da aula, todas elas, souberam prosseguir o
texto no espaço e tempo da sessão, e podo assegurar que saíram à
luz relatos mui bem construídos, focados com engenho,
originais, bem seleccionadas as anedotas. No entanto, eu pudem
escrever apenas as mesmíssimas palavras propostas e depois mais
nada excepto uns signos de interrogação, e assim foi como
respondim com elas no meu turno do exercício.
Mas desta vez, no diário, voltei a escrever aquele breve texto. E
foi uma tábua de salvação inesperada, pois imitando Monterroso
dei-lhe um título. E velaí está:
Augusto Monterroso, o mestre guatemalteco do relato breve, é dono
duma agudeza sutil larvada nas mais inocentes palavras, das que
se desprende aceirada e impia. Assim acontece na descrição duma
personagem chamada Leopoldo. Apresenta-se-nos um escritor
minucioso, implacável consigo próprio, que desde os dezassete
anos se entregara por inteiro às letras, tinha todo o dia o
pensamento na literatura e a mente a trabalhar com intensidade, e
nunca se deixava vencer polo sono antes das dez e meia, mas que
adoecia dum defeito: não gostava de escrever. E acrescenta: Lia,
tomava notas, observava, assistia a ciclos de conferências,
criticava o deplorável castelhano que se usa nos jornais (...)
mas era presa dum profundo terror quando se tratava de tomar a
pluma. Apesar da sua mais profunda ilusão de chegar a ser um
escritor famoso, postergara o momento de consegui-lo com as
escusas clássicas, a saber: primeiro hai que viver, antes cumpre
ter lido tudo, Cervantes escreveu o QUIXOTE a uma idade avançada,
sem experiências não hai artista e outras polo estilo.
(1)
Era-se uma vez uma meninha... Era-se uma vez uma meninha?
(1) «Leopoldo era un escritor minucioso, implacable consigo mismo. A partir de los diecisiete años había concedido todo su tiempo a las letras. Durante todo el día su pensamiento estaba fijo en la literatura. Su mente trabajaba con intensidad y nunca se dejó vencer por el sueño antes de las diez y media. Leopoldo adolecía, sin embargo, de un defecto: no le gustaba escribir. Leía, tomaba notas, observaba, asistía a ciclos de conferencias, criticaba el deplorable castellano que se usa en los periódicos (...) pero era presa de un profundo terror cuando se trataba de tomar la pluma. A pesar de que su más profunda ilusión consistía en llegar a ser un escritor famoso, fue postergando el momento de lograrlo con las excusas clásicas, a saber: primero hay que vivir, antes se necesita haber leído todo, Cervantes escribió el QUIJOTE a una edad avanzada, sin experiencias no hay artista y otras por el estilo». Leopoldo (sus trabajos), em MONTERROSO, A.: Cuentos y Fábulas, Círculo de Lectores, 1993, pág. 85.
«Cuando despertó, el dinosaurio estaba todavía allí». Op. cit., pág. 83.
Çopyright 18:
Inédito,
António Ramos Rosa; ilustração do autor
Çopyright 20: Posturas e significados: Sobre a ilustração
de Ç19,
Alberto González-Alegre