Pensamento, crítica e criação em galego-português
Na minha sala urbana, desde a segura altura do lazer, soavam no ar as linhas sinuosas do que foi talvez o canto mais sensível jamais feito na nossa terra: Eu fui ver a minha amada / lá para os baixos dum jardim .... O imenso cadáver de José Afonso seguia a cantar, apesar de a história dos Estados ter-nos furado a ética e a memória. E aí não pude deixar de imaginar, com irmandade, de que natureza arcaica e indivisível seria o impulso de chorar sem causa, por pura harmonia com o planeta, dos jovens semelhantes a mim que lá pelos anos 70, escutando José Afonso, ou Fausto, ou Voces Ceibes, contemplavam também a tarde desde uma penumbrosa sala do Porto ou de Lisboa. E foi assim, entre lembrança e lembrança, que me senti parte verdadeira dum país informe e estranho, em cuja viva superfície pouco a pouco secam as Pátrias como uma poça que não devia estar aí, e no seu lugar crescem redes orgânicas, humanas, redes de sentimento comum e resistência.
Não são bons tempos para dizermos tudo isto mui em alto. Alguns, na Galiza, acusam a gente que diz cousas como eu de não fazerem país, e eu creio que estas acusações erram. Talvez nós não queremos fazer o mesmo país que os que agora são poderosos. Mas sentir-se uma sorte de exilado forçoso é decerto uma forma, não mui agradável, de ir fazendo um país: um território diferente, às vezes puramente interno, às vezes alinhavado nas poucas frases que nos aceitam publicar ou nas contadas palavras a que nos atendem sem desnecessários mecanismos de ataque ou de defesa. O humor irónico de todos nós está a dar passo ao insulto contra nós próprios. Cresce a etiquetagem integrista, a categorização linguística e étnica dos demais, às vezes eufemizada, mas muitas outras brutalmente despida como uma víscera aberta. É lamentável que as palavras português ou castrapo se tenham convertido em insultos entre a intelligentsia, e é irrisório que alguns reclamem certificado de lealdade linguística até ao oitavo apelido nas aras da Identidade Galega. Acontece que algumas pessoas, de súbito, simplesmente por observarem em torno delas a tristeza que Espanha foi instalando neste Norte órfão de história, têm acolhido os símbolos galego-portugueses como a melhor maneira de resistirem eticamente. Também suponho que para alguns isolacionistas da cultura galega a resistência ética consistirá em tentar aproveitar as fissuras dos poderosos edifícios oficiais. Mas, tristemente, esta diversidade de estratégias (quando são de verdadeira resistência) reflecte tanto a nossa astúcia provisória como o nosso desespero pelo assédio.
Não me sinto obrigado a exculpar a necessária dose de nostalgia e romantismo que houver na minha visão dum país que não existe mas existe. A terrível mediocridade quotidiana das cousas e as pessoas, incluído eu próprio, justifica desenharmos qualquer projecto humano dificilmente executável, de geometrias difusas, onde se esvaem as barreiras entre as gentes e a terra, e onde circulam discursos de palavras diferentes, sem maiúsculas, como tíbias fitas de doas engranzadas, que tampouco dizem a verdade, mas que nos ajudam a sobrelevar-nos.
Se alguma vez uns e outros conseguirmos reunir-nos nesse território incerto, provavelmente o meu pessoal sentimento de exílio continuará também aí, como uma forma diária de não reconhecer-me na epopéia de miséria que criou a espécie humana. Mas já não poderei culpar-nos a nós próprios deste incómodo exílio, de que não nos deixem falar, ou de que nos deixem falar com critérios diferentes ao Norte e Sul dum rio que sempre esteve fortificado, ou de que, quando uns e outros falemos, nos botemos cuspe, berros, cães e leis linguísticas por um infantil medo a que, no fundo, o outro leve a razão, ou a que o Reino protector lhe acabe dando ao outro mais medalhas para ser enterrado na patética Glória das Letras e das Línguas, não ao pé dum intranscendente pessegueiro. Verdes prados, verdes campos, onde está a minha paixão? As andorinhas não param: umas voltam, outras não.
Çopyright 23:
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Um Agosto,
Pedro Diniz de Sousa