água
tatuada
Jorge Fallorca
do livro água
tatuada, uma edição de & etc,
Lisboa, 1999
Toda a poesia tem
lobos.
És vulnerável como tudo o que me entristece
Jim Morrison, in An American Prayer

Como o olhar consome a demora,
também a mão devora o livro em construção.
Vigilância sitiada entre tábuas impressoras, desaguando num
aquário de luz.
Ainda que acendam sombras, tudo quanto vejo é
falso.

Água tatuada, desalojada
pelo olhar das aves. Tudo o que acorda a argila tanspira no corpo da sombra.
Canta na curva do sal.
O que me esquece jamais sossega a pele da tatuagem.

Eu via a respiração tactear o horizonte. Nada manchava
o espelho do teu olhar. Nada cicatriza o país de cócoras para
o mar retroactivo.
É na levedura do rosto que a paixão ecoa e a água
encosta a luz.

Mais depressa que um labirinto
órfão, o desejo sobra na memória e as canas ciciam na
paisagem. Por enquanto, só a penugem da demência se orvalha
junto à mão. Ou o rosto aquece a sombra.
Mesmo que a salamandra remende o fogo, a tatuagem nunca apaga a
pele.

Possessão
arqueológica, soterrada sob um borrão de musgo. Os cardos encostam
a cabeça à luz. Os barcos descem ao átrio da areia.
O ferro dorme sob a raiz do medo.
Só a água vela a penúria de um horizonte de lama
ardente, como a cicatriz alastra ao vento.

A pele dorme na água.
Respira enquanto o olhar dissolve a náusea, como uma súplica
riscada na pálpebra das pedras. Órfã. Apátrida
no alvoroço dos cristais. Sonâmbula nos túneis do
vento.
Quanto mais se desce a pele da água, maior é o estertor
das mãos. Por dentro.

Os dedos partem a água,
como a tatuagem inaugura a insónia. Só o vento sobrevive no
fim das águias. Quanto mais a pele se entrega ao corpo, menos se desperta
a parede cega.
Eu gostava de poder dormir junto ao ar. Mas já não sei
como atravessar o sono - mastigar - ou arrepender-me de estar
vivo.

Redes de seiva calcorreiam
as octanas da tarde. Depois repousam nos subúrbios do desejo:
ardósia dando à margem.
Faúlhas que nascessem - ainda que ataviadas pela Lua - só
cruzariam emoções periféricas.

A atmosfera assoma o pesadelo,
eriça a carne. Sobre o napalm do sofá, a tatuagem elege
o corpo locomotivo. E um comboio tresnoita a água.
Nada do que asseguro fará sentido, enquanto o sal da memória
temperar a crueldade da paixão.

Só o gume da água
segura este delírio atómico. Mesmo que uma janela cante na
pele iluminada, adivinha-se uma matilha de pêlos. Sob a tatuagem.
Nem sempre o mar consegue adiar o rosto.

O olhar movimenta paisagens
adolescentes. O vento é oblíquo. A tarde amadurece numa ladainha
de nódoas. Mesmo o lodo não sabe que fazer da água.
É por isso - deve ser por isso - que tudo levita à passagem
da tatuagem perplexa.

Ultimamente apoio-me muito
na parede. Às vezes põem-me uma capa de sombras pelos ombros,
de onde assisto ao meu futuro. E é a sorrir na água do teu
olhar que te estendo um discurso de tábuas.
Já outros me disseram que não devemos descer à
rua com rostos alugados.

Um filete de sangue apodrece-te
a pele, aduba a tatuagem. E um piano aquece-me a voz, como o feno transmuta
a água.
Embalado num delírio crepuscular, adormeço as mãos
na restolhada do tacto, para te expor às tempestades da
pele.

Percorro-te com a língua
os labirintos do feno, até onde a cabeça escuta as
respirações verticais do sangue.
Depois o leão abate a asa do lençol, e a panóplia
do desejo não é para aqui chamada.

Morre-se a boca na tez
crepuscular, um retábulo de ardósia e liquescência. Mesmo
que o pavor urbanize o desejo, com seus exércitos de fantasmas e
hálitos podres, descubro-me de um belicismo que aterroriza a caça
e coabita com as feras.
O sol é um tigre ferido às portas do sono.

Tem por única dor
o rosto. Tudo o resto é a progressão do medo, a duplicidade
da voz no deserto da pele. Nunca outra ave me doeu no peito, como o voo adiado
ou interrompido sob o sangue.
Eu trabalho para que o teu sexo me amordace num beijo mortífero
e demorado.

Como a tatuagem esmaga a
pele, nada me recorda o veneno dos teus odores. Sacudo o pó do
coração, o enxofre dos lábios. A subtileza de uma
pétala de gelo, acordada no teu vulcão.
Assim como te evoco no saldo do desejo, somos cruéis até
onde se morde a voz.

Arde-me o corpo na cabeça
onde não estou. Devagar e tarde. Percorri o desejo até às
portas do vento. Quando o feno respira alto e a pele devolve a febre.
Nada mais segura esta doença, onde me acolhe a bússola
escancarada da tua gare.

Entrego a tatuagem aos dias.
Que se pergunta como regressar à pele. Porque a água foi percutida
pela ansiedade. Sitiada pelo egoísmo. E ocupada depois, pelo
remorso.
Já nenhuma respiração me entala a cabeça,
entretanto exilada noutros fogos. Chove, e eu também não sei
porque é que as sombras não têm
cor.

A luz afia o gume do teu
corpo. Para que a tatuagem veja a lepra sabotar a pele, onde correm os bastidores
do desejo.
Adormece nos mapas do lençol. Para que o sangue sacie a
erosão do medo.

Agora - que pouco ou quase
nada me sobra de ti, que o sol não saiba - aterroriza-me a volúpia
do esquecimento.
Acontece-me ouvir repetidamente a mesma vaga, como se dentro de mim
chocalhasse uma urze de sal.

Por vezes ainda me apanho
a soletrar o anonimato. A escutar o vento nas veias.
Prefiro demitir-me a cheirar a cicuta da memória.
Se não mentisse, diria que me sobra uma janela de resina e
asfalto. E não vou demorar-me a perceber se posso ou não ser
de outra maneira.

E enquanto a herança
pendular do cio repousa na água, as cabras retalham o basalto.
Na tradição das sombras, o feno distrai a noite.
Que se quer plana, e se exige quente à dobragem dos
sentidos.

Tanto quanto se me cola a
voz à tua pele, assim se decantam os cheiros. Se fustiga o vento na
penumbra húmida. E onde se recortar o sangue na poalha da neblina,
descobrirás as tribos onde decalcaste a paixão e o sono.
Tudo já foi dito e redito, para que o corpo não sature
mais a vigilância.

Quando Setembro se faz ao
mar, a água trepa pela labareda plúmbea. O barro aquece as
mãos, e o olhar esfola o sarro da memória. Na poalha dos crimes
acordados, boceja um coração atónito.
Ainda fará sentido projectar-me sobre as arqueologias da
ternura? |