A
avalanche de palavras, de retórica, de comunicação,
que desabou sobre o mundo, não foi uma forma de abaixar a voz humana,
tornando-a inaudível? |
Linguagem e voz
José
A. Bragança de Miranda
Está-se obsidiado pela
«actualidade». Não pessoalmente, não há aí
originalidade. Todos estamos ou temos estado, mais para nos afastarmos daquilo
que tem de inusitado, mesmo de violento. Preparamos o acontecimento, estendemos
as nossas redes para o apanhar, e uma forma milenar de o fazer é a
teoria, mesmo uma certa filosofia. Outra forma, que compete em eficácia
é rede de instituições com que se procura controlar
o acontecimento. Preparamos o acontecimento sem nos prepararmos. Os modernos
procuram encontrar no controlo uma capacidade de «produzir o
acontecimento», querem evitar a sua espontaneidade quase absoluta. Tudo
ilusões, justamente quando o espaço de controlo, sob a sua
forma cibernética -e recorde-se que já no grego era esta uma
das suas conotações-, parece estar a escapar à imensa
maquinaria que entretanto se foi instalando. A luta pelo controlo do
controlo, que quem imperou tenta ainda fazer jogar a seu favor, perde de
vista que apenas se potencia o que se tem ilusão de poder dominar.
Para bem ou para mal, a repressão do acontecer pela teoria ou pela
instituição está a chegar ao fim. Chega ao fim quando
o controlo se apresenta como o acontecimento decisivo, uma espécie
de catástrofe da cultura, como um paradoxal retorno da Physis.
A ser assim a própria ideia de linguagem -a que sempre se associou
o humano do homem- entra em crise. O problema é que, do ponto de vista
tecnológico não há diferença apreciável
entre a voz, a escrita e a imagem. E te-lo-á menos no futuro. Todo
o platonismo, que Nietzsche procurara inverter filosoficamente, desaba assim
nas suas estruturas metafísicas. Mas talvez a ideia de linguagem que
desenvolvêmos, retalhada entre as disciplinas e as poéticas,
fosse inaceitável, pois ia dispensando a palavra humana na sua inteireza.
No refluxo que Rorty chamou o linguistic turn sabemos agora com Davidson
ou com Lyotard que a «linguagem» não existe. No fundo era
uma espelhismo da vontade de controlo. A linguagem dos computadores, a
língua da técnica como diz algures Heidegger, tende a tornar-se
numa linguagem universal que lesa a voz humana, mas que também a liberta
das «grelhas» (ou seria «grilhetes») linguísticas.
Não será por esta razão que se procura impôr o
diálogo, a conversa? Justamente porque não há nada disso?
E seria desejável que houvesse? A avalanche de palavras, de
retórica, de comunicação, que desabou sobre o mundo,
não foi uma forma de abaixar a voz humana, tornando-a inaudível,
naquilo que tem de singular choque com a outra voz? E enquanto voz humana,
a promessa única do encontro comum de seres com voz, e não
apenas de «indivíduos» que monologam num diálogo
armadilhado desde sempre? Mas o botão línguístico ou
o dos aparelhos de som que diminuiu o som da voz até a ocultar
absolutamente, não anula o múrmurio de fundo que ela deixa
quando o «low volume» ou a «pause» são activados.
Como me surpreendo sempre quando o intervalo da «pause» termina
bruscamente, e num grito brusco a voz revolta (se) do electrónico,
com a intensidade do inesperado. Como se fosse possível controlá-lo.
Que depois tudo retorne ao volume do som controlado, que pelo outro extremo,
uma interrupção de «corrente» abale o continuum das
intensidades, para de novo e por seu lado ser reposto, tudo isso já
não consegue abolir essa surpresa, que enquanto durar
durará. |
 |