Desenho de interiores. Desenho de cadáveres. Uma caótica arquitectura num deserto cheio
de vozes. Situemos como ambientação musical uma mostra da decrépita cultura pop que
inevitavelmente (e em muitos aspectos afortunadamente) marca a existência de alguns de
nós: In the neighborhood de Tom Waits (decerto cita recorrente no nosso imaginário),
formoso canto sobre a morte na cidade ou sobre a cidade na morte. É o mesmo. Logo
procuremos um espaço adequado. Não é difícil se actuamos com sentido comum. Chama-se
lar. O espaço da execução. O território da família. O lugar da morte. Também é o mesmo.
Por fim, tracemos as linhas temporais e comecemos. É premissa essencial, iniludível: trato
de escrever agora, meses últimos de mil e novecentos e noventa e cinco, não antes, não há
talvez uma semana, um século, dez dias, o milénio que vimos sofrendo o nosso peculiar
desterro no inferno, esta já demasiado longa saison; trato de escrever sobre as estratégias
de tortura mais refinadas, sobre os procedimentos menores, mas fundamentais, de controlo
e extermínio, simbólico mas também factualmente físico, da dissidência na sociedade
capitalista, sobre a criação e educação das bestas que são carrascos na demência quotidiana
da sua autodestruição que é a nossa morte. Bairro crematório, tenho-o escrito em algures.
Espaços profundos de tortura onde se patenteia cada dia o extermínio do proletariado e da
sua imensa capacidade de revolta. De força revolucionária. De festa, enfim. Conheço a
falácia da família, aparelho ideológico básico de Estado, alicerce elementar para o
extermínio, a começar pelo mental, escassamente simbólico. Conheço a realidade do álcool
em cérebros oligofrénicos, produtores de uma imensa capacidade de crueldade. Tenho-as
sofrido e essa dor há-de me acompanhar sempre. Conheço a refinada tortura que se constrói
ao redor da negação do sexo nestas sociedades de múltiplas castrações, cousas que talvez
conhecia muito bem o Althusser de L'avenir dure longtemps.
Esse Althuser que eu li uma
vez com surpresa, esse e não outro. E tenho que lembrar agora que para mim negação é
sempre repressão activa (negativa, se se quer, em oposição à positiva perfeitamente definida
por Foucault em algumas das suas excepcionais análises). Porque se nota no estómago, no
mais fundo das entranhas. Conheço isso e conheço outras cousas. Conheço o som que fazem
os pés das bestas quando caminham sobre o teu crânio, o ruído que te penetra até ao fundo
das terminações nervosas e progressivamente te desquicia até fazer de ti um pobre palhaço,
um boneco nas mão dos teus torturadores. Um covarde. Um traidor. Agora creio saber bem
o que é o acto fascista da individuação, fundamento da destruição que nos constitui, e o acto
comunista, libertador, da desmembração, do fazer-se areia e desaparecer entre as águas
neuróticas que nos envolvem. O único espaço da libertação. O território nómada em geração
perpétua. Eu sei o que é a morte e o que é o medo, cousas bem distintas e nem
necessariamente complementares na hora derradeira. E a inutilidade da fugida. Quero falar,
enfim, de alguns dos procedimentos micrológicos (interaccionais, diriam alguns sociólogos
e linguistas) de anulação ou controlo, como se desejar, da luta de classes nos últimos anos
de século XX, nomeadamente da descrição e análise da construção e transformação do
cancro no interior do que é ainda agora o proletariado urbano, do cancro que o corrói e até
impede a constituição de células de resistência e luta directa, desde o indivíduo como
grupúsculo de combate fundamental até outras formas mais complexas. Ou seja, quero falar
das bestas. Da tortura. Dos fundamentos celulares, poderosamente obreiros na sua gestação,
do sistema de controlo que caracteriza este fim de século e que nem Foucault, nem Deleuze,
nem Althusser, nem Negri, nem Albiac conhecem nem alcançariam a compreender nunca
apetrechados nas suas salvíficas bibliotecas e na sua cómoda posição académica, nas suas
burguesas depressões e na sua burguesa derrota, na sua sintaxe poderosa e na sua honorífica
condição de pensadores de resistência,
marxistas, espinozianos, nietschzeanos. Assombrosos
analistas. Descritores rigorosos. Genialmente líricos no seu burguês intelectualismo,
marxista ou nietzscheano. Mas eu falo de cousas que eles desconhecem: falo da loucura que
atrapa as vizinhanças, que faz utopia descarnada a necessidade comunista, que corrompe
qualquer intento de convivência pacífica em comunidade, que enche de invejas os cérebros
dos obreiros e as suas famílias, que os torna máquinas-besta encarregadas de destroçarem
qualquer possibilidade de união na luta da libertação. Falo, afinal, da maldade como forma
de aniquilação (e não estou a adoptar posições maniqueístas, as falácias do bom e do mau;
falo de um sentimento de escravidão oculto trás-de uma falsa estética de domínio e até trás-de uma mais ou menos patética ética de poder confundida sempre com a prática diária do
extermínio do Outro, sob forma puro e simples fascismo, sob forma culto da personalidade,
sob forma culto do mestre ou a erudita referência marxista). Falo desse sentimento racional,
poderosamente humano, indiferente a fortaleza ou debilidade, que tornou o sonho comunista
em barbárie estalinista, delírio maoísta ou neurose castrista, do sentimento brutal que é o
mesmo que me faz temer a chegada do próximo ano, o que fez dos meus vizinhos carrascos
que desejam o meu sangue e a minha destruição. Falo da razão urbana, a que habita nestes
imensos ataúdes em que nos obrigam a morar, roubando-nos os amplos espaços que nos
pertencem. Falo do vírus mortal que atrofia até limites insuportáveis os já castigados
territórios onde nos movemos. Falo simplesmente em paranóia, no fascismo fundante que
invade os nossos cérebros em algum momento da nossa existência. Ou antes, no aparelho
fascista que é o nosso cérebro (humano, demasiado humano). Falo, enfim, na doença que
é o homem, e não nos termos ontológicos, rigorosamente reais, de Foucault ou Albiac, mas
na brutal materialidade do nível das mulheres e homens que nascem e morrem, e sofrem.
E sofrem. Falo, sei que o sabeis, no sofrimento constituinte que nos paralisa, que faz
cadáveres dos que alguma vez crimos conhecer a lógica da guerra, que intuímos as
estratégias da batalha que mude por fim a face de um mundo basicamente suicida, cruel e
injusto. O sofrimento que nos imobiliza as mãos, que entorpece o movimento das nossas
pernas, que faz objectos inúteis dos nossos olhos, que traspassa imisericordemente as células
dos nossos crânios antes pensantes, que devêm agora máquinas de combate inservíveis para
tudo menos para a autoaniquilação. Não tenho consciência de quando aprendi a ler, talvez
nasci fazendo-o, e agora sou incapaz de unir duas frases que tenham para mim significado.
Falo do ressentimento pelo que me roubaram no caminho e pelo que ainda me hão-de roubar
até que me arranquem o derradeiro segundo de existência. Falo da completa ruína do que
ia ser a minha ética, da obscena degeneração do meu projecto estético devindo agora o
cadáver que se reflecte no espelho das miragens, no espelho da matança. Falo. Falo. Falo
em perpétuos silêncios a aguardar o momento em que meus irmãos me cortem a língua ou
bebam o sangue que mane da minha nuca.
[E, afinal, trato de escrever, também, porque é o mesmo, sobre os sacerdotes da
heterodoxia, sobre o âmbito em que se confundem as suas éticas analíticas e as suas
humanas realidades. E sobre a falácia brutal da estética das suas línguas, que são una ao
final, ortodoxos, fascistas, paranóicos, lamentáveis perversões do Assassino. Elaboradores
de sintaxes de mediocridade sob semânticas tiradas da Bíblia de infinitos nomes. Aqueles
que nunca deixaram de ser burgueses por herança, mas sobretudo os meus irmãos no
desclassamento, os filhos da classe obreira urbana que fecham os olhos trás-de terem
aprendido a litania revolucionária, o catecismo que substitui o catecismo. Os meus irmãos,
o melhor espelho para observar a decrépita estética da minha derrota. Nessun dorma. Mas
não haverá vitória na alva. Não buscarei a salvação. Observarei o cancro e o iniludível
processo do extermínio. E falarei, no entanto, falarei e amarei. Falarei da inevitável vinda
do superhomem. E da sua derrota a mãos das bestas. E amarei cada instante em
que o ar penetre no meu peito asmático. Amarei cada instante em que um Dous errático me faça
esquecer a ruína do homem. Amarei cada instante em que um suave tremer da minha pele me faça
intuir a factibilidade da utopia: as palavras que destruam o mundo. Amarei cada instante. Cada
segmento de batalha. É isto a vida?, dizer-lhe-ei à morte. Muito bom! Pois que volte a começar!]
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